Mas não é a escola da PJ o motivo da nossa visita: a arte e os crimes que ali nos levam são outros. Atravessamos vários corredores e fazemos silêncio, pois estamos rodeados de salas de aula.
Ao cimo da escada, no edifício da carreira de tiro, uma placa pequena em acrílico indica que chegámos ao destino: o Museu da PJ. Apesar de existir legalmente desde 2 de outubro de 1957, data em que foram igualmente criados os laboratórios de Polícia Científica e a Escola Prática de Ciências Criminais, o museu acabou por «nunca sair do tinteiro», como explica a atual diretora, Leonor Sá. Só em 1990, com a chegada da então professora à escola, é que as coisas começaram a mudar: «Vim dar aulas e deparei-me com um museu em embrião, muito interessante, e achei uma pena ainda não se ter concretizado». Abraçou o desafio, fez uma pós-graduação em Museologia, foi descobrindo objetos guardados «por vezes em condições muito adversas» e «roubando» salas para a coleção – que espera agora poder ter, na nova sede da Polícia Judiciária, na rua Gomes Freire, em Lisboa, um palco expositivo à altura.
‘Obras de arte’, cárceres de terroristas e marquesas milagrosas
A sala onde está guardado o núcleo central do museu faz lembrar os gabinetes de ‘curiosidades’ e primeiros espaços de exposição criados por mecenas, que antecederam os museus como hoje os conhecemos. Aí, era comum verem-se crânios ao lado de obras de grandes pintores, intercalados por macacos embalsamados. Aqui, a coleção do núcleo central do Museu da PJ também se espraia entre um sem-número de objetos curiosos: além de quadros falsificados (de Malhoa, Vieira da Silva e Amadeo Souza-Cardoso, por exemplo), há arte sacra apreendida e nunca reclamada (como peças encontradas a céu aberto, num olival no Algarve), muitas armas, cartas ‘oficiais’ forjadas por Alves dos Reis, dezenas de milhares de notas falsificadas e até a adaga com que o padre Krohn tentou assassinar o Papa João Paulo II, em maio de 1982.
Há ainda objetos usados em pequenas burlas, como os pacos (ver foto na página anterior). Estes embrulhos, feitos de um lenço de mão com um nó difícil de desatar, continham um maço de papel com uma nota por cima e destinavam-se a enganar cidadãos vindos da província, que, aliciados para ficarem com o conteúdo, trocavam bens (como relógios) com os burlões, pensado que ficariam a ganhar ‘todo o dinheiro’ dentro do lenço.
Por vezes, são os próprios inspetores da PJ a enviar à diretora objetos que confiscaram. Mas se algumas das apreensões roubam um sorriso de tão inusitadas que são, outras provocam calafrios.
Exemplo disso são umas placas ferrugentas por agora encostadas a uma estante: quando montadas, retomam a fora do paralelepípedo encontrado por um caçador e o seu cão num pinhal da zona de Pataias, Alcobaça. A caixa era um cárcere subterrâneo que terá pertencido às FP-25 de Abril, grupo terrorista desativado uns meses antes da macabra descoberta (1987). Os inspetores pensam que a prisão enterrada não chegou a receber nenhum refém, mas lá dentro tudo estava preparado pare esse acontecimento: havia Nestum, Cornflakes e papel higiénico. Uns orifícios para a entrada e saída do ar, ligados a um sistema de ventilação artesanal, completavam a instalação, que tinha ainda outra temerosa característica: se alguém lá fosse encarcerado, não teria espaço para se por de pé.
Ao lado, encontra-se outro objeto desconcertante, confiscado em Lisboa a um burlão que prometia «curar todas as doenças, desde a espinhela caída aos problemas amorosos», conta Leonor Sá. As pessoas deitavam-se numa maca, dentro de um cubo de vidro rodeado com fios de cobre. A ‘marquesa milagrosa’ estava ligada a outro cubo de vidro mais pequeno, onde uma curiosa pirâmide invertida completava o aparato.
Mas o interesse das peças não vem só da imaginação dos criminosos – encontra-se também na própria história das forças de segurança.
«Existia já a Intendência Geral da Polícia, mas a primeira polícia com contornos modernos e semelhantes à que conhecemos hoje, com uma força policial uniformizada, foi criada em 1867. A Polícia Judiciária foi criada em 1945, mas antes teve uma força com funções muito similares que se chamava Polícia de Investigação Criminal (PIC)». Um dos seus grandes desafios iniciais era detetar os criminosos reincidentes. «Recorde que não havia impressões digitais», graceja Leonor Sá. Entre o espólio ligado ao reconhecimento de criminosos, destacam-se os objetos criados por Alphonse Bertillon na Prefeitura de Paris, em finais do século XIX. Este inspetor inventou uma metodologia de identificação judiciária e criminal alicerçada em três passos. O primeiro era a antropometria – ou seja, a medição dos perímetros cranianos através de objetos chamados craveiras, que mediam os membros inferiores e superiores e por vezes o dedo mindinho. Em segundo lugar, o retrato judiciário, que merece neste museu uma sala em exclusivo. O sistema de Bertillon completava-se com o retrato falado: os polícias descreviam os criminosos que tinham à frente usando placas com diversas características taxionómicas, em que cada traço fisionómico tinha um código. Anos mais tarde, a PJ começaria a usar o retrato-robô que é, na verdade, o oposto do falado. No retrato robot há uma vítima a descrever, por tentativas, o agressor. Na imagem ao lado, podemos ver um ‘identity quit’, feito de acetato, usado pela PJ antes dos retratos-robô estarem informatizados.
«Ser detido é uma daspiores penalizações,do ponto de vista social»
«À medida que fomos recolhendo os objetos, eles aglutinaram-se de forma natural à volta de três núcleos muito distintos», continua a diretora. «O arquivo histórico documental, que, como o nome indica, são documentos; o arquivo histórico fotográfico e o núcleo central», que acabámos de visitar. De entre os três núcleos, «só o arquivo documental já foi para a rua Gomes Freire, porque tinha lá condições».
Após ativar o código de segurança e fechar a porta da salinha, a diretora conduz-nos a um espaço ao lado, tão pequeno como o anterior, mas onde parece sentir-se mais frio do que faz na realidade: estão 20 graus e 50% de humidade relativa, e é aqui que são guardados os negativos de 30 mil retratos judiciários, maioritariamente ainda em vidro do início do século. O mais antigo data de 1911. Os negativos estão guardados em envelopes de papel não ácido, que por sua vez se colocam dentro de caixas metalizadas, em grandes armários brancos.
Este material acabou por suscitar um interesse especial na diretora, que vai defender em breve uma tese de doutoramento sobre o tema. Os retratos-base da sua investigação são, porém, fruto de uma coleção privada de fotografias inéditas: «Não pude usar a coleção do museu porque houve uma deliberação da Comissão Nacional de Proteção de Dados que nos impede de mostrar estes retratos, por considerar que pode pôr em risco a privacidade dos fotografados». No entanto, a maioria das dos retratados já morreu há bem mais de 50 anos, pelo que o museu considera que a sua exposição não iria pôr em causa o bom nome das pessoas, esperando, por isso, nova deliberação.
Mas o que nos contam estas imagens? Muita coisa, segundo Leonor Sá. «Ser detido é, do ponto de vista social, uma das piores penalizações. E o modelo das imagens dos criminosos entrou no imaginário da sociedade, são uma moldura retórica fortíssima».
Para a investigadora, é comum ouvir-se comentários sobre fotografias em que as pessoas ficam com um ar mais sisudo. «Alguém que tire um retrato de frente, mais sério, é logo confrontado com o facto de parecer um assassino». E se este confronto pode ser jocoso, os verdadeiros retratos judiciários pouco têm de divertido. «Houve uma altura em que se fotografavam os presos de frente, de perfil e a três quartos. Havia outra tendência que era a de retratar os homens de chapéu, que todos os senhores usavam na altura, para serem facilmente reconhecidos pela polícia».
Para o futuro espaço do museu, a equipa de trabalho está a digitalizar os 30 mil negativos: «A ideia é que as pessoas possam fazes as suas buscas e as suas próprias investigações através de uma base de dados informática, disponibilizada no local».
Enquanto o futuro não chega, foram desenvolvendo exposições extramuros. Igreja Segura, Igreja Aberta (um programa itinerante de exposição de Arte Sacra) e o Programa SOS Azulejo (para prevenir e combater os roubos) são apenas dois exemplos que provam como o museu se dá bem fora das salinhas na escola: em 2013, ganhou o Grande Prémio da União Europeia para o Património Cultural Europa Nostra, na categoria quatro (que corresponde à sensibilização).
A fixação nas investigações criminais
Por enquanto, se o leitor quiser visitar estas peças terá de expressar o seu interesse e deslocar-se a Loures, à Quinta do Bom Sucesso: «Não fazemos divulgação porque estamos dentro de uma escola e temos algumas condicionantes. Na realidade, o que temos aqui são ‘reservas visitáveis’».
Mas o futuro museu está bem montado na cabeça da diretora, que tem inclusivamente desenvolvido projetos nos últimos anos destinados a este fim, como por exemplo o projeto História Oral da PJ. «Chamámos antigos reformados e pessoas que passaram pela PJ que aceitam ser entrevistados, gravámos as entrevistas tanto em vídeo como em áudio. No futuro, no espaço expositivo na nova sede, tencionamos colocar essas entrevistas de forma a poderem ser visionadas pelas pessoas», conta a diretora. «A intenção é de facto montar um espaço expositivo em Lisboa, porque aqui não faz qualquer sentido, estamos longe».
Se há problemas com o espaço, há também certezas sobre a importância e originalidade da coleção: «Não tenho dúvidas de que a coleção é interessante, pelas reações de todas as pessoas que cá vêm e falam do assunto com um grande interesse». Leonor Sá não se admira com estas reações: «Basta ver como o interesse pela ficção criminal tem crescido desmesuradamente nos últimos 100 anos. Desde a literatura de Sherlock Holmes e Agatha Christie que há um boom de disseminação a nível planetário e que nunca mais parou. Depois passou para o cinema e para a televisão, com inúmeras séries. Hoje em dia, temos canais de televisão exclusivamente dedicados ao tema».
Mas de onde virá este interesse? «Essa é a one million dollar question», ri Leonor Sá. «Suponho que isso ainda não foi devidamente estudado, mas eu associo dois vetores. Por um lado, a curiosidade natural e científica das pessoas (e às vezes também um bocadinho a curiosidade mórbida…). Por outro lado, penso que é capaz de ser também uma maneira que o ser humano criou de poder ultrapassar o medo da morte. Ou seja, a ficção criminal normalmente parte de um homicídio, minimizado porque essa morte deixa de ter importância, passa a ser um pretexto para uma investigação. E ainda por cima uma investigação que se torna lúdica». Portanto, «apesar da tragédia, o negativo rapidamente se ultrapassa para uma aventura, que permite arrumar confortavelmente a morte numa gaveta».
No novo museu, a curiosidade mórbida ficará, o mais possível, fora do espaço: «Queremos explorar a curiosidade científica e mostrar às pessoas não só o que foi a evolução histórica das polícias, como o tipo de trabalho que desenvolvem hoje em dia». Ficou interessado? A estreia está prevista para breve.