Cândida Ventura: a dissidente comunista

1918-2015. João tinha seis anos quando a conheceu. Cândida viveu, durante dois anos, na casa da família, que funcionava como um ponto de apoio da direção do PCP – em linguagem da clandestinidade, como casa em que os funcionários do partido podiam refugiar-se. Cândida Ventura esteve lá de 1956 a 1958.

João usou a palavra «impressiva» para a descrever: para uma criança, era ‘impressivo’ conhecer alguém como ela, como era ‘impressivo’ ter de aprender senhas e contra-senhas para a defesa da casa. As pessoas que usavam a casa tinham a chave da entrada, mas não a da casa. «Entravam rapidamente no prédio, para não ficarem expostas na rua , se não tivessem conseguido avisar que vinham, pelas formas convencionadas, tinham que dizer a senha», lembra. A frase que Cândida dizia ficou sempre na memória da criança: «C’est moi». João recorda-se também da prisão dela, em 1960.

Só voltou a ver Cândida há pouco. Ele e a irmã foram visitá-la a Portimão. Falaram da vida e desses tempos: «A rutura dela com o partido afastou-nos, mas há uns anos voltámos a falar». Luísa e a irmã de João assistiram ao julgamento de Cândida Ventura. «Tinha 18 anos, fomos, eu e a Isabel, ao julgamento da Cândida na Boa-Hora. Estavam muitos antifascistas a assistir. Ela era franzina, mas tinha uns olhos que era impossível não notar. Fez uma defesa impressionante». Nunca mais a viu. Mas essa visão há 55 anos gravou-se na memória de Luísa.

Cândida Ventura nasceu na então cidade de Lourenço Marques, Moçambique, a 30 de Junho de 1918, mas cresceu no Algarve. Em 1936, matriculou-se em Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras de Lisboa, onde conviveu, entre outros nomes, com Mário Dionísio, Vasco Magalhães-Vilhena e Fernando Piteira Santos, com quem se casou muito nova. Impressionada com a Guerra Civil de Espanha passou a militar no Bloco Académico Antifascista (BAFF), organização ilegal próxima do Partido Comunista.

Entre 1937 e 1938, milita na Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas, dirigida por Álvaro Cunhal. Chegaram a namorar. No livro sobre Cunhal do jornalista Adelino Cunha, confessa admiração e amizade, apesar da rutura política e sublinha-lhe a normalidade humana: «O Álvaro foi um homem como outro qualquer na sua vida sexual. Apesar de querer passar pelo homem que não se interessava por essas coisas e que não prevaricava, prevaricou. Prevaricou como as outras pessoas, homens e mulheres, prevaricam», garante.

Fez parte da redação de O Diabo que, tal como O Sol, era um dos jornais que juntava os meios intelectuais antifascistas. Quando se dá a chamada ‘reorganização’ do PCP, nos anos 40, um processo que parte de um conjunto de militantes comunistas vindos do campo de concentração do Tarrafal que rompem com a direção existente do partido a quem acusam de estar infiltrada pela polícia, Cândida Ventura, como Cunhal, alinham ao lado dos ‘reorganizadores’.

Tem um papel importante no trabalho político que levou às greves das fábricas do calçado em São João da Madeira. Na sequência dessas lutas passa à clandestinidade, tornando-se a primeira mulher com funções de direção no PCP depois da reorganização. Fica responsável pela região norte no PCP. Em Julho de 1946, passa a integrar o Comité Central do partido. Devido a divergências com Júlio Fogaça, em Março de 1954, é acusada de atividade fracionista, suspensa e só é readmitida em 1956.

Depois de 18 anos de clandestinidade é presa a 3 de Agosto de 1960. É enviada para o forte de Caxias e condenada a cinco anos de prisão. Por razões de saúde, é libertada a 11 de Julho de 1963. A partir de 1965, reside na Checoslováquia como representante do PCP e colabora na Revista Internacional. Está em Praga durante a Primavera de Praga, em 1968. Sobre este período, diz que esteve sempre de alma e coração com os checos contra a invasão soviética e que se manteve no posto de representante do PCP junto do PCUS para poder ajudar a mudar o sistema por dentro. Mas portugueses que viviam em Praga na época dizem que isso é falso e acusam-na de ter estado ao lado do partido contra a revolução checa.

Regressou a Portugal no início de 1975 e, no ano seguinte, rompe com o PCP. Mantém intervenção política chegando a apoiar, em 1980, a candidatura do general Soares Carneiro contra Ramalho Eanes. Em 1984, publica o livro O Socialismo Que Eu Vivi, em que testemunha o seu percurso político e denuncia os regimes socialistas . Foi funcionária do Ministério dos Negócios Estrangeiros antes de voltar ao Algarve e fixar residência em Portimão. Morreu no dia 16, no Hospital do Barlavento, em Portimão, aos 97 anos.

nuno.almeida@ionline.pt