Hospital de S. José podia ter recorrido a privados

Os dois maiores hospitais de Lisboa nada fizeram para contornar os efeitos do braço-de-ferro entre enfermeiros e Governo por causa dos cortes nas horas extraordinárias. E podiam ter recorrido a privados.

O braço-de-ferro dos médicos e enfermeiros com o Ministério da Saúde já vinha de longe. Quando David Duarte morreu, na madrugada de 14 de dezembro, já dezenas de outros doentes tinham chegado nas mesmas condições às urgências do São José. Quatro deles tinham perdido a vida à espera de uma cirurgia. 

Ao contrário do que aconteceu em outras regiões do país, naquela unidade hospitalar só foi tentada uma solução para este problema, a de repor os direitos dos médicos. Ou seja,  a administração não arranjou forma de, mesmo com as condicionantes, haver equipas completas em todos os turnos. Essa falta de gestão pôs tudo nas mãos dos médicos e dos enfermeiros, que só viam uma saída para esta situação.

Durante largos meses, o ex-ministro da Saúde, Paulo Macedo, teve na sua secretária uma proposta para repor os valores das horas extraordinárias aos profissionais de saúde de neurocirurgia do Centro Hospitalar de Lisboa Central. Mas Macedo nunca assinou o despacho.

No Hospital de São José (HSJ), há quatro neurocirurgiões capazes de realizar a operação de que o jovem precisava. Se sobreviveria ou não à intervenção é uma dúvida que ficará sem resposta. Mas essa cirurgia nunca chegou a acontecer porque, apesar de um neurocirurgião estar de escala na noite de sexta-feira, dia 11, faltavam elementos à equipa, composta por um mínimo de sete pessoas.
A recusa de médicos e enfermeiros em fazer horas extraordinárias – para as quais é obrigatória a adesão voluntária destes profissionais – prende-se com o valor oferecido pelo Ministério da Saúde. Antes dos cortes, ao que o SOL apurou, um médico podia receber até cerca de 1.000 euros brutos por cada banco de 24 horas. Os enfermeiros receberiam cerca de um terço deste valor.
Na sequência das medidas aprovadas com a chegada da troika ao país, foi aplicado um corte geral de 50% nas horas extraordinárias da Função Pública. Contas feitas, um médico passou a receber qualquer coisa como 300 euros brutos por cada banco, três vezes mais que o enfermeiro. Valor insuficiente, na opinião de destes profissionais de saúde altamente especializados, que acusavam o ministro de desvalorizar médicos enfermeiros. Mesmo quando Macedo se aplicava pessoalmente para reforçar a equipa do S. José com a contratação de mais um neurocirurgião.

Setor público pode recorrer aos privados 

Naquela noite de sexta-feira, dia 11, quando David Duarte chegou ao S. José, vindo de Santarém, o médico que o recebeu não chegou sequer a pegar no telefone para completar a equipa. O princípio tinha ficado claro e nenhum profissional voltaria para o serviço nas condições em vigor.

No Hospital de Santa Maria (HSM), o maior do país, a situação era exatamente a mesma: de S. José ainda foi feita uma chamada para lá, mas também não havia equipa disponível.

O que aconteceu com David Duarte terá acontecido antes com dezenas de outros doentes. Ainda que não se saiba ao certo os números de S. José, sabe-se que num hospital central como o HSM, por exemplo, registam-se todos os anos cerca de 40 casos de aneurismas rotos.

Por outro lado, David esperou o fim de semana inteiro pela cirurgia sem que ninguém tivesse recorrido às instituições privadas em busca de uma equipa que assegurasse a cirurgia. E poderia fazê-lo. Quem o diz é António Arnaut, ‘pai’ do Serviço Nacional de Saúde: «Em último caso, pergunta-se, por que é que não transferiram o doente para o privado, para poder ser operado no fim de semana? Aí está uma função que o privado pode desempenhar, que é de ser complementar».

Além disso, o privado tinha condições para responder ao problema. Segundo o SOL apurou, o Hospital da Luz, por exemplo, tem três neurocirurgiões com competência para este tipo de operações.
A morte do jovem de 29 anos teve, pelo menos, o condão de desbloquear em poucos dias um diferendo de anos: vão ser repostos os direitos dos médicos. E, sabe-se agora, com essa reposição, ficaram de imediato asseguradas todas as escalas do HSJ (até domingo).

Encontrar responsáveis

A administração do Centro Hospitalar Lisboa Central vai abrir um inquérito, para apurar «os factos ocorridos». Mas a realidade é conhecida de todos. Ao ponto de, nos corredores do HSJ se comentar que, «em Portugal, até para se ter um aneurisma ou um AVC é preciso ter sorte na hora» a que isso acontece.

De resto, as declarações do presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) deixam claro que as explicações esbarram todas no mesmo substantivo: cortes. «Estes hospitais não tiveram recursos humanos para dar resposta a situações de doentes como este», disse Luís Cunha Ribeiro.

O ministro da Saúde discorda. Adalberto Campos Fernandes diz que mortes como a de David «não podem voltar a acontecer». Mas também sublinha que esta não é apenas uma questão «financeira». Trata-se, diz o responsável da pasta, de melhor «organização dos meios e recursos».

Além do presidente da ARSLVT, e na sequência da tomada de posição daquele, pediram a demissão os presidentes do conselho de administração do Centro Hospitalar Lisboa Central, Teresa Sustelo, e do Centro Hospitalar de Lisboa Norte, Carlos Martins. Saídas que, sabe o SOL, acontecem muito por pressão do ministro da Saúde.