Muito nos aconteceu este ano. Se existisse uma bebida certa, não hesitaria em tomá-la. A melhor bebida é a que nos retira sobriedade sem nos embebedar. Não pode ser nem um bocadinho mais nem um bocadinho menos, se for mais do que a conta o bafo do álcool apropria-se dos poros e de tudo o resto, se for menos a realidade não nos deixa sorrir sem constrangimento. Para piorar as coisas, há dias em que um copo e meio é a medida certa e noutros precisamos de mais meio ou de menos um quarto de copo. O melhor era inventarem comprimidos que nos calibrassem o corpo e a alma: nem sóbrios nem bêbados, puro estado de graça.
As crianças não precisam disso. Vivem num outro tempo, num outro espaço, o tempo e o espaço que um dia perdemos. Ainda agora, uma criança brincava com um inseto dentro de uma caixa. Nos seus cinco anos não podia caber numa caixa de centímetros, mas parecia tão lá dentro como a amiga borboleta. O dedinho toca-lhe através de uma ligeira fresta e por muito que lhe diga e pergunte, não me ouve. Como poderia? Está com a borboleta, convoca-a para corridas e brincadeiras indecifráveis aos meus olhos, apenas se distrai quando uma mosca pousa perto. ‘Ela quer brincar’, diz-me por fim. ‘Queres vir? Basta vires para dentro, vem comigo, ela depois vai lá ter’. Não posso, lamentei – ‘o meu coração engordou muito, não cabe na tua caixa mágica onde moscas e borboletas se divertem como se fossem gente. Vai tu. Eu fico’.
Em que momento perdemos a capacidade de conseguir acreditar no Natal e caber numa caixa de borboletas? Em que momento tantos de nós deixaram de acreditar que maus destinos existem para ser mudados? Neste Natal, lembro-me de várias pessoas de quem não conheço o nome. De uma senhora nova que parece velha, encontrei-a tanto este ano. Todos os dias o mesmo caminho, os mesmos sacos pesados, a mesma dolência no caminhar, uma tristeza funda que a faz mais velha. Os mesmos horários, o mesmo lugar no autocarro. Levanta-se na mesma esquina, antes do Campo Pequeno. Toca no mesmo botão no instante em que se levanta. Ontem, hesitou. Deixou passar a esquina, não carregou no botão, levantou-se quase no último momento. Senti que era o dia em que podia ter mudado a sua vida, o dia em que caminharia à procura de um novo destino, o dia em que sairia numa estação diferente, num outro Campo Pequeno capaz de lhe trazer novos lugares, novas esquinas e novas tristezas que matassem esta que a faz mais velha do que parece. Ou então estava apenas distraída.
Há uma diferença de um oceano entre quem olha e quem vê. A mesma diferença que existe entre quem fala e quem diz. Porque há quem olhe, sem ver. E quem fale sem dizer. Como há quem veja sem olhar. E diga tudo sem falar o que quer que seja. Desconfiar de quem muito olha ou de quem pelos cotovelos fala, é por tudo isto uma obrigação higiénica.
O problema é sempre a pressa de chegar, uma pressa que nos condena a não chegar a parte alguma. Um jogo de ilusões e espelhos, quanto mais rápidos mais lentos, quanto mais vorazes mais esfomeados. Passamos pelas coisas como Bolt pelas pistas; estamos online, vemos televisão, lemos, ouvimos e pouco retemos que não se desfaça à superfície. Ouvimos sem escutar. Vemos sem aprofundar. Escrevemos sem pensar. Queremos ser rápidos, ser primeiros, ser profetas de um tempo, mesmo que seja do tempo da nossa rua ou do nosso prédio. Estamos atrasados e não damos por isso. Atrasados de sprintar sem meta. Falta-nos regressar à estrada, redescobrir a lentidão, redescobrir o Natal.