O problema é de identidade. De necessidade permanente de ajustar contas, de procurar culpados, de transformar a vida (e as notícias sobre ela) num guião de novela com picos de interesse que não desmobilizem a atenção das pessoas.
Uma parte importante dos portugueses quer estar entretida com os protagonistas da vida (por vezes da sua própria vida), como está entretida com as figuras das séries que consome. Tudo é volátil, hoje temos um assunto que nos interessa, amanhã outro e por aí adiante.
Ver a comunicação social oferecer o palco dos debates presidenciais a figuras de circo é a prova de uma ausência de problematização. Deixou de ser decisivo definir fronteiras editoriais, assumiu-se que apenas interessa alimentar o apetite das pessoas pela novidade, pelo escândalo, pela sede de novas sensações.
Seria possível fazer de uma outra maneira? Não estou certo. É apetecível ver Jorge Sequeira ou Tino de Rans debater com Marcelo Rebelo de Sousa, vai ao encontro da grande força das televisões provar que todos podemos dar opinião, que todos contamos, que as televisões são o lugar onde todos são realmente iguais – uma igualdade um bocadinho esquizofrénica.
Nenhum diretor de Informação acredita nisso. Pensam, como eu teria de pensar se dirigisse uma estação de televisão, em audiências.
Para vários, não para todos, o jornalismo não salva o mundo, é apenas a sua caixa de ressonância (tese que terá de ser combatida sob pena de o jornalismo morrer e, com ele, a democracia tal como a reconhecemos).
Nesse sentido, o ataque aos médicos é particularmente indecoroso. Não por ser desculpável o que aconteceu no Hospital de São José, mas pelo clima de persecução, pela forma como a classe médica tem sido castigada por políticos, comentadores e opinião pública. Dizem da sua justiça sem saber nada sobre organização hospitalar, apontam o dedo, fazem julgamentos de valor e de caráter.
Nem por acaso, estive infelizmente na passada semana no Hospital da Estefânia. Era fim-de-semana, na sala de espera encontravam-se dezenas de pessoas apertadas umas nas outras, ambiente muito pesado, crianças a chorar em permanência.
Fui atendido num cubículo por um médico que não dormia há mais de 24 horas, as paredes estavam esburacadas e por pintar, o gabinete separava-se de outro gabinete por uma cortina. A pessoa que tinha à frente, que ganha quatro euros à hora nas suas horas extraordinárias, médico que teve de se licenciar com uma média de 19 valores e depois fazer a especialidade durante mais cinco anos, se desse um berro e tratasse mal alguém que o tivesse tratado mal naquelas horas, é bem provável que fosse agredido e denunciado a um canal de televisão por tratar mal os doentes.
Há médicos que são uns pulhas. Como há professores que deviam ser expulsos do ensino. Porém, o Estado Social (alicerce de uma democracia avançada) morrerá se tudo para nós passar a ser pão e circo.
O que nos restará então? Eleger um dos palhaços a concurso e cada um se fazer à vida. Sem médicos, professores e juízes que poderiam (finalmente) ser atirados aos leões famintos, num espetáculo que bateria todos os recordes de audiência deste mundo e do outro.