Ainda que falemos de uma marquesa, Merteuil (Crista Alfaiate) de seu nome, e de um visconde: Valmont (Ivo Canelas). A aristocracia também pode sofrer deste mal. Assim deve ter pensado Heiner Müller quando decidiu escrever Quarteto, baseado na obra Ligações Perigosas de Pierre Choderlos de Laclos. Um texto pelo qual Jorge Silva Melo revela uma particular predileção: é a segunda vez que o encenador o leva a palco. Agora nos Artistas Unidos, até 13 de fevereiro.
«Apeteceu-me voltar a fazer isto»
Recuemos até 1988, ano em que Silva Melo se atirou a Heiner Müller ainda no CAM/Acarte. «Depos disso nunca mais me lembrei da peça. E estava a editar os livrinhos dos Artistas Unidos e apeteceu-me voltar a fazer isto. Já não me lembro sequer do espetáculo, mas fiquei com vontade de fazer. Quando soube que o Ivo Canelas estava livre nessa altura fiquei com vontade de trabalhar com ele de novo, não acontecia há quinze anos», conta o encenador.
Entenda-se que quando dissemos que Müller se baseou em Laclos convém esclarecer que o próprio dramaturgo alemão afirmou nunca ter lido as Ligações Perigosas. Fez uma espécie de leitura diagonal, como se uma leitura letra a letra lhe tramasse as ideias. «Ele estava em Roma quando escreveu, nem sequer tinha acesso à sua biblioteca. Pega nas personagens como um músico pega em temas, podia chamar-lhe ‘Variações sobre um tema das Ligações Perigosas’. Conta aproximadamente a história principal, retrata as personagens principais, mas faz variações».
Como se isso não bastasse – os ares do Coliseu talvez tenham ajudado – Müller estava em pleno processo de segundo divórcio «bastante doloroso», diz-nos Jorge Silva Melo antes de acrescentar: «Portanto também é um adeus à potência, mais do que a manipulação que está no Laclos, aqui é mais o adeus ao jogo, à sexualidade, e um aproximar daquilo que ele diz no texto: a noite dos corpos».
Em palco, por vezes Merteuil é Valmont e Valmont é Merteuil, cortesias de uma peça a dois quando falamos de um Quarteto. Algo que, diga-se, aumenta a dinãmica entre o duo, e tudo isto acontece sem introdução, não há uma legenda que o notifique das mudanças. No entanto, não vai precisar desta porque a coisa está bem feita.
«É preciso tempo para que as palavras nos doam»
Estamos perante um texto profundamente promíscuo, lascivo, onde o vocabulário denso e a linguagem cuidada se confunde com a visceralidade que une as duas personagens. Merteuil e Valmont chegam mesmo a delinear uma espécie de plano onde ninguém vence – sobra-lhes, praticamente, indagar sobre a sua condição de beco-sem-saída.
Pode perceber-se que fácil, para os atores, não pode ser. «Houve um ensaio em que achei que estávamos longe, em que a peça demorou 50 minutos. Quando os atores tentam apressar e dar vivacidade a um texto que é lento perde-se tudo. Era uma chatice. O espetáculo acabou por ficar com 1h10m, é preciso tempo para que aquelas frases nos firam e nos doam», expõe Silva Melo. Saber sofrer é uma virtude.