A página foi virada. E António Costa tem estado à altura do lugar que ocupa. Movendo-se num caminho de pedras e escarpas; gerindo um equilíbrio instável entre poderes contraditórios com quem precisa de estabelecer compromissos; pressionado pela opinião de comentadores que defendem a capitulação da sua vontade às imposições dos credores e de Bruxelas e atacado por um Presidente da República desejoso de provar que a sua palavra deveria ter sido seguida, o primeiro-ministro tem provado ser um político à antiga. Assume as decisões, é implacável na execução da estratégia e prepara-se para sair vitorioso de uma violenta negociação em que, mais uma vez, foi dado como politicamente condenado.
António Costa defende a ideia de que a economia (e tudo o resto) está subordinada à política e às opções dos atores políticos. Traçado o dogma, ao arrepio da tendência dominante em Portugal e na Europa, fez por levá-lo à prática: ministros falam com os políticos que hierarquicamente estão ao seu nível, técnicos da Comissão Europeia ou do FMI reúnem com técnicos das Finanças ou diretores gerais, pedidos privados a ministérios têm de ser reportados ao gabinete do primeiro-ministro e por aí adiante.
A escolha de Mário Centeno é baseada nesse pressuposto. Nas últimas duas décadas, os líderes de governo escolheram genericamente ministros das Finanças a quem ofereceram o seu lado direito. Optaram por figuras fortes, académicos conceituados ou com fortes ligações a organizações europeias de referência. Numa frase, com peso suficiente para estarem na primeira linha e serem respeitados nos lugares onde realmente se decide o futuro do país.
Existia um problema essencial: vários primeiros-ministros ficaram reféns do ministro das Finanças e, em consequência, o país deixou de ser comandado por políticos e passou a sê-lo por burocratas para quem a maioria dos assuntos se reduz a balancetes aritméticos. Mário Centeno representa no enredo de Costa um papel secundário.
Essa perversão, combatida na teoria por analistas e comentadores (quantas vezes ouvimos o argumento de que faltam políticos a sério?), é paradoxalmente defendida por eles. A discussão sobre a aprovação do Orçamento de Estado tem sido acompanhada de um generalizado ataque ao governo e às suas opções, como se existisse uma vontade das elites com acesso à opinião de que tudo corra mal a Costa; contam-se pelos dedos de uma mão (e sobram dedos) opinadores que ofereçam o benefício da dúvida ao primeiro-ministro.
A constatação de facto, e sem juízos de valor, é que deixaram de existir em Portugal órgãos de comunicação com uma linha editorial mais à esquerda. Ao contrário do que sucede em Espanha, França, Alemanha, Itália, Inglaterra ou Estados Unidos, o pensamento ideológico mais à esquerda não está representado e isso não deixa de ser uma perversidade e um risco para a própria democracia. Pela ausência de pluralismo e pela dificuldade de sobrevivência de jornais de referência que são excessivamente parecidos e redundantes.