Quando o telemóvel ao volante é uma arma mortal

Pedro tinha acabado o dia de aulas na secundária da Amadora. Despediu-se dos colegas, despediu-se da namorada e pegou na mota. Arrancou. A professora Teresa (nome fictício) também estava de saída. Entrou no carro e pôs o motor a trabalhar. Estava ao telefone e não quis desligar a chamada. Fez marcha-atrás até meio da estrada…

“Eu não vi, juro que não vi”, diria com insistência, um mês mais tarde, a professora, regressada de uma baixa psiquiátrica mas ainda abalada com o que se tinha passado.

Num desses primeiros dias em que estava de volta às aulas, Teresa chegou à sala para encontrar uma única palavra escrita a giz branco na ardósia negra da sala: “Assassina”. Os amigos de Pedro não esqueciam. E não perdoavam.

Aumento exponencial de casos

No ano passado, a GNR registou um número recorde de portugueses apanhados a usar o telemóvel enquanto conduziam: quase 29 mil condutores, um aumento de 30% em relação a 2014. “As pessoas ainda não têm a real perceção da gravidade de usar esses aparelhos enquanto conduzem”, diz o major Cruz, para explicar, em parte, as razões desse aumento. A outra metade da explicação decorre do aumento do número de fiscalizações que os militares puseram em marcha, conscientes de que este comportamento é uma das maiores ameaças a uma condução segura.

Vítor Marçal (nome fictício) correu o risco e sentiu a consequência na pele. Há um vazio de cerca de meia hora na memória deste condutor de 34 anos, numa tarde de agosto de 2013. Num momento seguia ao volante do seu carro  pelo Eixo Norte-Sul, em Lisboa. No instante seguinte  abria os olhos, despertado pela voz do médico do INEM: “Não se mexa”. Rodou os olhos e já só conseguiu ver os bombeiros em cima do que restava do seu carro, a tentar desencarcerá-lo.

Traumatismo craniano grave, com afundamemto (é o termo que explica a situação em que parte do crânio entra pela cabeça dentro) foi a consequência a tratar de imediato pelos médicos. A cicatriz no rosto ficou, mas o grande problema foi a incapacidade no pulso, que, dois anos depois do acidente, continua a sentir. E que também não deverá desaparecer. Também partiu o nariz e por isso teve de ser operado, para lhe deixaram “a cara direita”. Esteve de baixa um ano e durante um ano e meio fez fisioterapia.

Só meses mais tarde conseguiu juntar as peças para perceber o que se tinha passado naquele dia. “Uns amigos pediram-me para ver no telemóvel se, à hora do acidente, não tinha recebido uma mensagem e, de facto, tinha”. Ouviu o toque, baixou-se para chegar ao telemóvel e o carro chocou contra uma carrinha parada na berma da estrada.

Uma lição para a vida? “Tenho muito presente o que aconteceu, fiquei mais sensível em relação aos riscos e as mensagens, para mim, são críticas, não envio”, refere Vítor.  Mas há sempre um mas. “Mas não considero que atender uma chamada numa estrada livre seja um risco para a condução”.

Arriscar até ao limite

Em Portugal, as campanhas de sensibilização sobre os perigos de usar o telemóvel ao volante não são das mais agressivas. Mas são recorrentes e insistem sempre nessa tecla – ainda que, aparentemente, com poucos resultados.

Se for a 150 km/h na auto-estrada, Diogo Ferreira só leva a mão ao telemóvel se ele tocar. Quando consome álcool, também tenta – tenta – não usar o aparelho. De resto, “não há limite”. Facebook, mensagens, chamadas – vale tudo. Já chegou a consultar um número num dos telemóveis para ditá-lo à pessoa com quem falava no outro telemóvel, que segurava com a mão direita. Tudo enquanto conduzia. “Tenho noção de que fico muito mais vulnerável quando mexo no telemóvel, mas é a própria lei que permite que se atenda uma chamada, desde que se usem dispositivos próprios”, defende o jovem condutor.

Há mais exemplos. Não é raro ver Luís Borges em plena A1 a colocar o destino no GPS enquanto escolhe o filme que vai passar no tablet durante a viagem de três horas até ao norte do país. Se o telemóvel tocar entretanto, quem lhe telefona não fica pendurado à espera de resposta. A atenção dispersa-se por mil e uma distrações, mas acidentes são coisa que, tal como no caso de Diogo Ferreira, também não fazem parte do currículo deste condutor. Um susto, aqui e ali, e pouco mais do que isso.

De manhã, Rita Marques aproveita o ‘para, arranca’ do IC19 para dar os últimos retoques na maquilhagem. Batom, rímel, blush – na verdade, por vezes, entretém-se com um pouco mais que meros retoques na pintura.

‘O terror é perder a carta’

Num tempo de fenómenos virais, foi replicado milhares de vezes o vídeo de seis amigas que estão a gravar um vídeo nos arredores de Teerão. Enquanto conduz, uma rapariga filma as restantes, que cantam para a câmara do telemóvel. O vídeo tem 41 segundos e termina com o carro a despistar-se. Uma das jovens morreu.

O psicólogo Luís Reto reforça a ideia da GNR: “Não há uma perceção do perigo” que este tipo de comportamentos representa. “A ideia é a de que se foca a atenção noutro assunto durante uns breves segundos e que se continua na estrada”, diz, para concluir: “E a verdade é que na maior parte das vezes é mesmo assim”. O problema é quando a exceção toma o lugar da regra.

Há alguns anos, Luís Reto trabalhou com a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, colaborando em estudos sobre adições e condução. Nessas análises, ficou clara a existência de dois grupos de pessoas: os utilizadores compulsivos de gadgets e os utilizadores vulgares.

No primeiro grupo, o psicólogo social encontrou “pessoas mais ansiosas, que usam estes aparelhos para reduzir essa ansiedade”; no segundo grupo estão os tais que se habituaram a recorrer ao telemóvel sem que alguma vez tenham tido problemas e para os quais isso se tornou um comportamento quase natural.

A evolução dos carros também tem servido para tornar o perigo uma noção mais ausente. “Hoje, os carros induzem uma sensação de segurança que não nos deixa perceber que, na verdade, temos nas mãos máquinas perigosas”. E, com o tempo, essa “resposta de natureza tecnológica” deverá tornar-se ainda mais acentuada, com carros cada vez mais preparados para colmatar as limitações (naturais ou impostas) dos humanos.

Em qualquer caso – concluiu Luís Reto nos estudos em que participou -, o risco e a consequência nunca estão na primeira linha de pensamento dos condutores. Mais do que ver-se envolvido num acidente grave ou, sequer, apanhar uma multa, “o verdadeiro terror das pessoas é mesmo ficar sem carta”, refere o investigador.

Pontualmente, há quem reveja comportamentos e ponha o telemóvel de lado mesmo sem ter passado por uma situação limite ou apenas um susto. Casos raros. É que, segundo explica Luís Reto, sem sentir na pele o efeito de uma má experiência ao volante, dificilmente um condutor sentirá necessidade de mudar seja o que for na atitude que adota quando conduz.

Não se sente, ainda, uma condenação social destes hábitos. Até porque a imagem de um telemóvel utilizado quando se está atrás de um volante é generalizado – é, em termos simples, ‘o que toda a gente faz’. Basta andar alguns minutos na estrada e percorrer meia dúzia de quilómetros para perceber que, sobretudo entre as mulheres e os homens até aos 40 anos, isso acontece de forma natural “Os meus amigos penalizam muito mais uma condução com excesso de álcool que o facto de mexer no telemóvel quando estou a conduzir”, reconhece Diogo Ferreira. Para as autoridades, o caso está mais que estudado: telemóvel, álcool, excesso de velocidade e fadiga são os fatores de risco que mais contribuem para que ocorram acidentes.