Mais de uma década a estudar sobre a eutanásia, dois livros publicados sobre o tema (perfazendo cerca de 700 páginas), muitos congressos e uma história pessoal para contar. Laura Ferreira dos Santos, 56 anos, é a fundadora por excelência do movimento Direito a Morrer com Dignidade.
A antiga professora de Filosofia da Educação na Universidade do Minho, aposentada por doença oncológica, defende a despenalização da eutanásia e do suicídio assistido em Portugal. “Quando comecei a pensar neste tema nem sabia o que era suicídio assistido”, conta.
Em primeiro lugar, Laura lidou com a morte da mãe, que sucumbiu a um cancro do pâncreas. “Cuidei dela até ao fim, morreu nos meus braços”. Depois de testemunhar o imenso sofrimento da progenitora, soube que ela própria sofria de cancro.
E nunca mais desistiu de aprofundar o tema tabu: a morte assistida. “Encomendei muita bibliografia estrangeira, numa altura em que o foco estava na Holanda”. Este acabaria por tornar-se o primeiro país onde a eutanásia foi legalizada, em 2002, logo seguido da Bélgica.
Em 2008, Laura Ferreira esteve 15 dias no Centro de Investigação da Eutanásia em Groningen, na Holanda, dirigido por um professor de Direito norte-americano naturalizado holandês. E foi sozinha a um encontro sobre morte assistida em Paris. “Como em Portugal não havia um movimento cívico organizado, deixaram-me assistir a título individual”.
Já publicou dois livros sobre os processos de fim de vida: Ajudas-me a morrer? e A morte assistida e outras questões de fim de vida. No lançamento do primeiro, conheceu o médico nefrologista João Ribeiro dos Santos, com quem partilha a ‘fundação’ do movimento cívico. “Basicamente, foi ele quem me encostou à parede para que avançássemos com algo organizado”, conta. Em 2014, após uma emissão do programa Prós e Contras (RTP) suscitada pelo caso da norte-americana Brittany Maynard, de 29 anos que escolheu o dia para morrer na sequência de um agressivo cancro cerebral, encontraram-se novamente.
‘A Laura é a força motriz’
O cofundador do movimento confirma: depois do programa, foram jantar e após muitas trocas de emails, surgiu em novembro passado o movimento cívico.
Antes, já se tinham cruzado. “Fui ao lançamento do livro da Laura Ajudas-me a Morrer. Na apresentação, ela acusou os médicos de estarem sempre contra. Quando me levantei, disse que não era verdade, há muitos médicos a favor”, recorda João Ribeiro dos Santos.
A relação do médico nefrologista – que já presidiu o Colégio de Nefrologia na Ordem dos Médicos – com a temática começou há décadas. “Em quarenta anos vi muitos muita dor física e psicológica, muitos doentes a piorar até um ponto em que não se conseguia aliviar a dor, ou melhor, o sofrimento. E as conversas entre os profissionais de saúde que refletem sobre o tema foram surgindo, até que chega a parte familiar”. “O meu pai morreu há trinta anos, e a morte dele foi péssima. Teve um aterosclerose e esteve acamado seis anos. No final já não era ele”. O médico não esconde que este acontecimento fez firmar o seu pensamento. E depois do pai, assistiu à partida de “muitos amigos e familiares em grande sofrimento terminal”.
Nunca mais deixou de pensar no tema, até que há cerca dez anos fez várias tentativas de o trazer para a ordem do dia.
“Há dez anos enviei um abaixado assinado por mais de 70 médicos para a Ordem dos Médicos (OM), ainda o bastonário era o Pedro Nunes, na tentativa de desencadear a discussão. Não resultou em nada”. Depois, num congresso de Nefrologia chegou a juntar um painel, com Alfredo Loureiro e vários outros médicos, para discutir o tema. “A coisa animou um bocadinho mas não chegou. Tentei criar um movimento e reuni um grupo de pessoas, que estavam todas de acordo com a eutanásia, mas achavam que não era ainda o momento”.
A relação do médico com a eutanásia fica em banho-maria, até ao lançamento do primeiro livro de Laura Ferreira dos Santos. “Fui pensando e escrevendo umas coisas, até ‘obrigar’ quase a Laura a arrancar com o Direito a Morrer com Dignidade após o último Prós e Contras sobre o tema”.
João Ribeiro dos Santos não hesita sobre a quem atribuir os louros do projeto. “O mérito é todo da Laura, que começou a escrever muito e fez uma batalha individual em termos de intervenção pública. Eu apenas aproveitei”, diz a rir.
Resultados surpreendentes
Agora que o manifesto foi oficialmente divulgado e o tema abriu novamente uma brecha na sociedade civil, os dois fundadores sentem alguns receios, mas também surpresa. Para Laura, o grande obstáculo agora é a desinformação. “Tenho ouvido muitas intervenções que não estão corretas, por exemplo do bastonário da OM e do doutor Rui Nunes. Até mencionaram o caso da longevidade do cientista Stephen Hawking (que sofre de esclerose lateral amiotrófica) mas esqueceram-se de dizer que ele é a favor do suicídio assistido”.
Já João Ribeiro dos Santos ficou surpreendido com a facilidade com que arranjaram a heterogénea lista de notavéis que assinou o manifesto. “Foi um sucesso estrondoso e inesperado. Esta discussão já está a ser uma vitória para os portugueses”.