Nos estatutos da reguladora, pode ler-se que são atribuições da ERC «zelar pela independência das entidades que prosseguem atividades de comunicação social perante os poderes político e económico». Este seria, para Joaquim Vieira, presidente do Observatório de Imprensa, o ponto em que a instituição poderia focar a análise ao processo que culminou na nomeação do jornalista Afonso Camões para a direção do Jornal de Notícias.
A questão que se coloca, tendo em conta as conversas mantidas entre José Sócrates, o advogado Proença de Carvalho (administrador da ex-Controliveste) e Afonso Camões é até que ponto, nos primeiros meses de 2014, e três anos depois de ter deixado o Governo, José Sócrates poderia ainda ser encarado como um «poder político» ou «económico».
Queixa de ‘cidadão comum’ obriga ERC a investigar
Arons de Carvalho recusa que a entidade reguladora faça «julgamentos na praça pública», em relação a este ou a qualquer outro caso. E nem o facto de estar em causa um ex-primeiro-ministro deverá levar a ERC a «alterar os seus procedimentos», defende.
O vice-presidente da ERC esclarece que a queixa apresentada esta semana por um «cidadão comum», na sequência da notícia publicada há uma semana pelo SOL, está a ser apreciada pelos serviços jurídicos e que, depois disso, os membros decidirão que passos dar. «Somos uma entidade reguladora para a comunicação e temos, por isso, obrigação de ouvir os órgãos de comunicação social. Agora, se vamos além disso ou não, não posso neste momento dizer», afirma Arons de Carvalho, deixando em aberto a possibilidade de que possa ser requerido ao próprio José Sócrates que esclareça a sua intervenção neste processo.
Certo é que, desde a primeira notícia dando conta de uma ingerência externa na nomeação de Afonso Camões, há cerca de um ano, não houve intenção de qualquer membro da ERC de aprofundar o tema. Isso pode acontecer «quando há uma clamor social» em função de certas notícias. Neste caso, não houve essa tomada de posição. «Não lhe sei dizer porquê», limita-se afirmar o responsável da ERC, sem razões aparentes para a falta de ação da entidade que deveria regular este tipo de situações nos media.
‘Mancha’ que paira sobre o jornalismo português
Para Estrela Serrano, ex-vogal da ERC, o caso tem outra abordagem. A escolha de um diretor cabe à administração da empresa e «obedece a critérios e procedimentos que não são públicos nem têm que sê-lo». Aliás, diz, a nomeação de Camões «não é caso único nem raro em Portugal onde a ‘cunha’ é uma ‘instituição’ em muitos setores, incluindo nos media».
No tempo a que reportam as conversas com Proença de Carvalho, Sócrates já não era PM, «pelo que a sua opinião e influência sobre um administrador ou acionista de um grupo de comunicação não têm qualquer relevância criminal ou de outra natureza».
De resto, Serrano considera que uma eventual tentativa de controlo editorial dos jornais do grupo, através da nomeação de Afonso Camões, não passará de «teoria da conspiração». Mesmo em tempos de precariedade, os jornalistas estarão protegidos pelo código deontológico e por instituições de supervisão.
No limite, Joaquim Vieira antevê que estas «nomeações bizarras com origem estranha» terão consequências negativas para a imagem dos jornalistas portugueses. «Poderá haver uma condenação moral da classe jornalística, porque as pessoas poderão achar que essas práticas são pouco consentâneas com os princípios de independência», diz. Mas a discussão far-se-á sempre nesse plano ético e não no plano legal.