O SNS mata-nos

A eutanásia veio à baila quando a nova bastonária dos enfermeiros disse: “Quem trabalha no Serviço Nacional de Saúde sabe que estas coisas acontecem”. Ana Rita Cavaco deu a entender que a eutanásia é praticada no SNS. Disse que viveu situações em que médicos sugeriram dar aos pacientes insulina em quantidades que lhes provocariam a…

E o que acontece quando uma mulher bastonária dos enfermeiros resolve dizer uma coisa destas sobre os médicos? Acontece-lhe a Ordem dos Médicos apresentar queixa contra ela e o Ministério da Saúde pedir a intervenção da Inspeção-Geral.

 Por sorte (para Ana Cavaco) ou por decência, o médico António Pereira Coelho, conhecido como o ‘pai’ da fertilização in vitro em Portugal, professor da Faculdade de Medicina de Lisboa e ex-membro do Conselho Nacional de Ética Para as Ciências da Vida, veio admitir num programa na TV que assistiu a vários casos de eutanásia em hospitais. E até reconheceu que “colaborou na altura da morte do seu pai num cenário de morte muito arrastada, previsível para um curto prazo”.

 A classe médica é a classe mais corporativa do país. Bastou uma enfermeira acusar médicos de eutanásia para se armar um pé-de-vento, e bastou um médico conceituado admiti-lo para acabar com o vendaval.

O SNS é um Estado dentro do Estado. É, na prática, a maior empresa do país, o maior empregador. Um doente dá dinheiro a ganhar a muita gente. Cria postos de trabalho a profissionais de saúde, dá lucro às farmacêuticas, às entidades que fazem o transporte, às clínicas que fazem tratamentos. A doença é uma indústria – e nela os doentes são ativos preciosos.

 Ora jantamos com notícias da eutanásia, ora somos acordados com notícias da negligência médica. A eutanásia e a negligência são as duas faces da mesma moeda: a vida humana.

Há pouco tempo um jovem morreu num hospital público por falta de assistência médica. Descobrimos aterrados que aos fins de semana não havia equipas médicas qualificadas nos hospitais mais importantes de Lisboa. Por falta de organização, por falta de acordo quanto às horas extraordinárias a receber pelos profissionais de saúde.

Chocantemente, nesse caso, o bastonário da Ordem dos Médicos não veio a correr apresentar queixa contra os médicos que não estavam nos hospitais ou contra a negligência na morte deste jovem. Nem o Ministério da Saúde veio pedir a intervenção da Inspeção-Geral. Pelo contrário, houve a desculpabilização imediata.

 É verdade que há o risco de a eutanásia ser usada como forma de gente sem escrúpulos se livrar dos seus velhos e doentes. Mas é igualmente verdade que há o risco de se perpetuar a vida e o sofrimento das pessoas apenas para garantir que o maior negócio do país, a saúde, continue a dar trabalho e lucro a tanta gente.

O SNS não nos mata a pedido. O SNS mata-nos quando estamos cheios de vontade de viver e contra a nossa vontade. Ou seja, a nossa vontade não conta para nada.

Parece que só conta a vontade de tantos outros.

sofiavrocha@sol.pt