Degolar é um eufemismo

O Velho Testamento arruma Judite em duas linhas. Uma viúva que, consciente da sua beleza, se aproxima do acampamento do exército inimigo para degolar o general Holofernes. Mas para Rui Catalão duas linhas não chegam. Ninguém invade terreno inimigo sem entraves nem disfarce, quase como se batesse à porta para anunciar ao que vinha, como…

O que aqui se invoca é o dúbio confronto, a espada de Holofernes versus a sensualidade de Judite, o copo de vinho, eterna embriaguez do general perante o equilibrismo pantanoso de Judite. Sim, que o medo pode sempre vencer. É um jogo de probabilidades sem números. Judite, de Rui Catalão, está na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II até 27 de março.

Espetáculo que partiu de um convite de Tiago Rodrigues, ainda antes de assumir o comando efetivo do D. Maria II. «O Tiago Rodrigues estava interessado em criar reportório e eu não costumo trabalhar assim. O processo de escrita acontece durante toda a criação da peça. Desta vez sabia que antes de ter a peça feita tinha que ter um texto», afirma Catalão.

Peça que estava guardada na gaveta do criador há algum tempo. Isto porque vem da altura em que escreveu Ester, espetáculo que viria a ser interpretado por 12 companhias de teatro juvenil no âmbito do programa Panos 2013, da Culturgest. Caso para dizer que Catalão tem um fraquinho pela Bíblia como ponto de combustão criativa. «O património literário da cultura ocidental começa ali. De certa forma estão ali as origens do pensamento ocidental e cristão. Interesso-me muito pelo feminino, e não quero dizer necessariamente por mulheres, quero dizer feminino, até para um homem. As mulheres da Bíblia, para aquilo que entendemos como personagens, são superficiais e por isso interessantes para explorar», explica.

Projeto com uma série de referências exteriores, RuiCatalão revela que Judite é um tributo à pintora italiana Artemisia Gentileschi. Mulher que foi abusada sexualmente em jovem e fez de Judite o seu veículo inspirador, sobretudo através de uma componente autobiográfica enorme, com a qual Catalão se identifica perfeitamente. «Achei muito interessante que alguém, muitos séculos antes de mim, tivesse, obviamente com outros valores, com menos liberdade, encontrado uma estratégia para fazer aquilo que eu faço, com as suas diferenças. Sem a Artemisia não existiria esta Judite», conclui Catalão. Agradeçamos a Gentileschi.