Logo à partida, tal como José Sócrates, também Lula é suspeito de ter recebido património a título de ‘luvas’, património esse que está em nome de outros para esconder o seu verdadeiro titular. Lá como cá, muito se discute se há ou não indícios suficientes de crimes que justifiquem uma investigação. E o argumento-mor dos que se põem do lado de Lula e de Sócrates é o de que «há um abuso de autoridade de alguns setores do poder judicial com fins políticos» – uma expressão que, de forma sintomática, foi mais uma vez usada esta semana por Pedro Silva Pereira, braço-direito do ex-primeiro-ministro, para comentar o caso brasileiro. Só mesmo Sócrates argumentaria melhor: lembram-se da entrevista à TVI, em que se queixou de ser vítima de uma «campanha de terror» do Ministério Público, essa espécie de organização terrorista que decidiu embirrar com ex-primeiros-ministros que vivem à grande e à francesa, apesar de não terem rendimentos para isso?
Finalmente, Sócrates foi intercetado pelos magistrados de Aveiro que investigavam o Face Oculta a combinar ao telefone com Armando Vara como controlar os media que lhe eram incómodos, tal como Dilma Rousseff foi surpreendida pelo juiz da Operação Lava Jato a acertar com Lula a sua nomeação como ministro, de forma a beneficiar de um foro especial de investigação pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro e assim escapar à eminente prisão preventiva por ordem dos juízes da primeira instância. Um foro especial de que Dilma já goza enquanto Presidente, tal como Sócrates beneficiou por ser primeiro-ministro.
Por isso, Sócrates viu as suspeitas do crime de atentado contra o Estado de Direito serem transferidas pelos magistrados de Aveiro para investigação do procurador-geral da República e do presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Estes decidiram arquivar as escutas e mandá-las até destruir por as considerarem ilegais, uma decisão jurídica muito controversa e que impedirá para sempre a opinião pública de sindicar sem margem para dúvidas quem estava certo: os magistrados de Aveiro ou Pinto Monteiro e Noronha Nascimento.
O desfecho no Brasil, porém, foi outro e faz toda a diferença. O juiz Sérgio Moro decidiu levantar o segredo de Justiça da investigação a Lula, explicando que é patente que as escutas tornaram-se inúteis pois os visados já sabiam da investigação e, como tal, o sigilo também já não fazia sentido. Invocando, para isso, a parte da Constituição brasileira que consagra «a publicidade» e «o interesse público» dos processos de crimes contra a Administração Pública.
A discussão na comunidade jurídica está ao rubro, com muitos a apontarem fragilidades jurídicas ao juiz e a defenderem que o que fez foi ilegal.
Apesar de alguns pormenores anómalos nas decisões judiciais brasileiras – como o de um outro juiz, federal, que suspendeu a posse de Lula depois de ter participado na véspera numa manifestação popular contra ele e a Presidente, além dos comentários críticos que fez contra ambos no Facebook –, os magistrados, os políticos e mesmo os jornalistas portugueses têm muito a aprender com o que está a passar-se no Brasil.
Há uma frase nos despachos de Sérgio Moro que é lapidar: «A democracia numa sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras». Levada à prática, esta doutrina teria feito toda a diferença em Portugal no processo Face Oculta. Pode ser que ainda venha a tempo na Operação Marquês.