No final da década de 90, Carlos Cruz – atualmente a cumprir pena de prisão pelo crime de abuso sexual de menores – era o principal rosto da televisão nacional. E foi ele o escolhido pelos responsáveis políticos para representar Portugal na corrida (bastante disputada entre as três candidaturas em jogo, com a de Espanha à cabeça) à organização de uma das principais competições desportivas do mundo, o campeonato europeu de futebol. «Apanhado de surpresa, não sabia o que pensar, e a primeira grande dúvida era: ‘porquê eu’», confessa Carlos Cruz na autobiografia com o título Uma Vida.
O resultado foi anunciado pela UEFA a 12 de outubro de 1999. Sentados ao lado de Carlos Cruz, no palco de todas as decisões, em Aachen, na Alemanha, estavam José Sócrates, ministro-adjunto do então primeiro-ministro António Guterres, Miranda Calha, secretário de Estado do Desporto, Gilberto Madaíl, presidente da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), e António Sequeira, também dirigente da FPF.
A reação dos responsáveis portugueses ao anúncio da vitória espelhou bem a ansiedade com que aguardavam a contagem de votos de todas as federações envolvidas. A incerteza manteve-se até ao fim, apesar dos esforços que – garante agora Carlos Cruz – terão sido feitos para garantir que a prova decorresse em território português.
Jogos de poder no Euro 2004
O primeiro capítulo desta vitória nacional começa a ser escrito anos antes. Assim que começa a pegar nos dossiês, Carlos Cruz manifesta a intenção de organizar um espetáculo no Casino Estoril, para fazer a aproximação aos dirigentes das várias federações (quer as que tinham direito de voto quer as que poderiam exercer influência sobre as primeiras). Mas havia um problema: «A UEFA não permitia ações de promoção nem contactos pessoais com os membros que votavam e proibia a oferta de qualquer tipo de lembrança a quem quer que fosse que tivesse ligação direta ou indireta com a decisão de escolha».
A comissão executiva acaba por ultrapassar esse obstáculo e consegue ser recebida pelas federações. Mas a operação de charme subiria de patamar passado pouco tempo.
Carlos Cruz era um dos principais responsáveis pela candidatura de Portugal ao Euro 2004. Por essa responsabilidade, recebia 10 mil euros mensais (2.000 contos, na moeda antiga). Se Portugal ganhasse a corrida, esperava-o uma success fee cujo valor seria definido pessoalmente por Sócrates.
Pagamentos por baixo da mesa
Encontro após encontro com os responsáveis federativos, a candidatura nacional acumulava apoiantes.Nalguns casos, os encontros também ajudavam a perceber que países não dariam apoio (como aconteceu com a Alemanha). E é nesse jogo de aproximações – em que assistiu a «aspetos menos recomendáveis» do futebol mundial – que, relata Carlos Cruz, alguns episódios de corrupção e tráfico de influência terão ocorrido.
Na autobiografia, o ex-apresentador de televisão relata um episódio em que Gilberto Madaíl paga 15 mil dólares a um responsável federativo, cujo país não especifica. «O presidente da Federação desse país tinha manifestado o desejo de passar férias em Portugal. Alguém teve a ideia de oferecer as férias ao senhor e família. Fizemos as contas e como ele não tinha datas escolhidas levou-se um envelope com os dólares equivalentes ao cálculo das viagens e de uma semana de férias no Algarve», escreve Cruz, que prossegue referindo que «à saída da reunião, Madaíl, discretamente, entregou-lhe o envelope. Como o dólar valia mais do que o sol do Algarve, o nosso amigo guardou o dinheiro e não pôs os pés em Portugal».
Em outubro de 1999, no dia do anuncio da UEFA, o mesmo dirigente mostrar-se-ia disponível para falar com colegas de outras federações e mostraria o boletim de voto com o nome de Portugal à cabeça dos três países. Seria a compensação pelo envelope.
Mas não terá sido o único episódio. No diálogo com as várias federações, Carlos Cruz chega ao contacto com outro alto responsável desportivo, com influência junto de responsáveis da UEFA – cuja identidade não revela, mas que o ex-vice-presidente da FPF, António Boronha, garantiu esta semana ao jornal A Bola ser do Azerbaijão.
Foi um amigo de Cruz quem fez a ponte com o dirigente e quem trouxe novidades. O dirigente «estava aberto a colaborar [votando em Portugal], mediante um acordo». Dias mais tarde, num encontro em Lisboa, um segundo intermediário abre o jogo: «Teríamos o voto garantido daquele país e a promessa de que faria lóbi a nosso favor junto de várias federações do Leste». Preço: «Uma vivenda no Algarve no valor de 100 mil dólares».
Carlos Cruz diz ter contactado José Sócrates, para ouvir a resposta do então ministro. «Ó Carlos Cruz, não podemos perder isto por uma questão de dinheiro! Era o que faltava!», relata o ex-apresentador.
Crimes prescritos
Os episódios – a terem acontecido – têm mais de 16 anos. Sócrates nega-os. «É completamente falso e só posso entendê-lo à luz de um delírio», reagiu o ex-primeiro-ministro, em declarações à SIC. Madaíl seguiu o mesmo caminho, falando ao jornal A Bola. «É tudo mentira.Desminto categoricamente».
Em condições normais, tanto o socialista como o antigo homem forte do futebol português e até Carlos Cruz seriam suspeitos de corrupção e tráfico de influências.
Não é por acaso que Cruz fala agora destes episódios. «Acho que já se passaram anos suficientes, pode-se contar», disse à Visão. Anos suficientes porque depois de 15 anos (segundo a legislação atual), os alegados crimes terão prescrito. Ainda assim, tanto Sócrates como Madaíl podem avançar com processos cíveis contra Carlos Cruz, para defesa da honra e do bom nome. Para já, apenas o ex-presidente da FPF se mostrou disposto a remexer no percurso que trouxe o Euro 2004 a Portugal.