O francês vai enfrentar o primeiro superclássico em Espanha como treinador com a calma de um gladiador quando tudo à sua volta parece desmoronar-se. Pela frente, Luis Enrique Martínez García, esse treinador-culé (adepto), que encarna o espírito do Barça até à medula. «Não há nada mais quente para um culé que vencer o Madrid».
Mas Zidane continua calmo. Há uma história no livro Zidane: Magia Branca, de Santiago Siguero, que explica a serenidade de Zizou. Vem dos tempos de miúdo quando jogava no Cannes, quando interrompeu o jogo e saiu do campo disparado para as bancadas depois de ouvir um adepto insultar os seus pais. A história repetir-se-ia anos mais tarde, mas Zidane já não era nenhum rapaz: foi na final do Mundial da Alemanha quando deu uma cabeçada em Materazzi. O francês acabou expulso e esse acabou por ser o seu último jogo como futebolista. Mais tarde saber-se-ia que o italiano tinha insultado a sua irmã. É tudo uma questão de caráter.
Um homem tranquilo
«Tudo o que faço é pelos meus pais», disse, quando assinou pelo Real Madrid em 2001 com um recorde de transferência para a altura (75 milhões de euros). Foi neles que pensou quando marcou dois golos na final do Campeonato do Mundo de 1998 e deu o único título à França, com uma vitória sobre o Brasil, por 3-0. Aconteceu em Saint Denis, a comuna que o seu pai, recém-chegado a França uns anos antes e perdido em Paris, tinha decidido pedir trabalho nas obras de um estádio em construção – estava, sem o saber, a ajudar a construir o palco que consagraria o filho, o Stade de France, em Saint Denis. O triunfo elevou o capitão Zidane a figura nacional, na capital, com o rosto do camisola 10 da França projetado no Arco do Triunfo, juntamente com as cores da bandeira, prestou-lhe homenagem. «Vou dormir tranquilo», disse ontem o agora treinador do Real, resgatado ao Real Madrid Castilla, essa espécie de equipa B que foi a sua única experiência enquanto treinador. O olhar estava sereno, fixado no desafio que o espera.
Nada tira o sono a Zidane. A história de Luis Enrique, essa, é a de um convertido. Começou no Real Madrid (1991-1996) e foi para o Barcelona (1996-2004). Foi direto mas nunca foi acusado de traição, nem teve direito a cabeças de porco (como aconteceu com Luís Figo quando o português fez o percurso inverso e trocou a Cidade Condal pela capital espanhola). O seu clube sempre foi o Sporting Gijón. Mas agora é o mais culé de todos no Barça. E segue uma linhagem recente de grandes treinadores, desde 2003, a qual ganhou tudo o que havia para ganhar: Rijkaard, Guardiola, Tito Vilanova e Tata Martino. No dia da apresentação de Enrique, em maio de 2014, Zubizarreta não se esqueceu: «Ele conhece a nossa filosofia e é dessas pessoas que se atrevem a desafios difíceis». Sabia que falava de um deles e que compreendia o seu jogo e, mais que isso, o pensamento.
Golpe definitivo
Depois de ter ganho tudo na época de estreia – uma repetição do que havia feito Pep Guardiola – e estar com números que ultrapassam os do catalão, Enrique, que venceu a Liga, Taça, Champions, Supertaça Europeia e Mundial de Clubes, sabe, tão bem quanto o sabe Zidane, que se vencer hoje fica tudo alinhado. «Seria o golpe definitivo ao Real e Atlético, mas ainda falta ganhar».
A Messi, o grande mágico atrás de todos estes treinadores, basta-lhe um golo para chegar aos 500. «É uma cifra de outra galáxia, muitos nem a somar os golos nos treinos conseguem isto, eu incluindo», contou Enrique. E confessou: «Olho para a cara de Leo e está louco para conseguir a vitória».
Mas nem isto tira o sono a Zidane. Vem de uma cidade difícil, Marselha, para onde os pais decidiram assentar vindos de uma pobreza deixada na Argélia, que torna as pessoas difíceis. Essa Marselha que se rebelou contra o absoluto Luís XIV e que fez com que o rei Sol construísse o forte de Saint-Nicolas e tenha decidido apontar os canhões, não para os invasores exteriores, mas para o interior da própria cidade.