Ricardo Valadas: ‘Se a lei fosse cumprida à letra, a PJ pararia’

Aos 40 anos, Ricardo Valadas assume a direção da ASFIC. O inspetor defende o reforço de meios da Polícia Judiciária e assume que há investigações bloqueadas por falta de recursos.

O Governo pretende centralizar a cooperação internacional na secretária geral de Segurança Interna, que passaria a ser em Portugal o ‘Ponto Único de Contacto’ (Single Point Of Contact). Isto continua a preocupar a ASFIC?

O que se alega é que querem passar o gabinete nacional da Interpol e a unidade nacional da Europol para a égide da secretária geral do Sistema de Segurança Interna. Isto não tem nada a ver com a pessoa, não é pessoal.

Veem problemas decorrentes desta eventual mudança?

Há aqui duas questões muitos simples. Uma:  a PJ tem uma unidade criada para tratar essa informação, especializada nessa área e com profissionais a trabalhar na informação criminal vinda desses organismos.

A criminalidade violenta, organizada e também os crimes económico-financeiros.

Sim. Segundo ponto: 75% da informação veiculada por esses canais diz respeito à PJ e aos crimes investigadas por esta polícia. Mas há um terceiro ponto: a PSP e a GNR e todos os outros Órgãos de Polícia Criminal (OPC) têm neste momento assento na unidade que existe na PJ. Pergunta-me agora: ocuparam os lugares? Não.

Por que acha que isso aconteceu?

Posso especular. Ou não têm interesse na matéria – o que duvido – ou não se sentiriam confortáveis por estar aqui.

Sob o controlo da PJ?

Exato. Aí entramos no campo político, eventualmente para mais tarde invocar que não houve cooperação internacional por causa da PJ. Mas posso garantir que, neste momento, não há nenhum pedido por satisfazer a qualquer OPC. Resumindo: não ocupam o lugar e não há pedidos por satisfazer, portanto não percebo onde está a falta de cooperação ou de troca de informação.

Essa competência deve caber exclusivamente à PJ?

A PJ tem um edifício novo, tem uma estrutura própria para albergar essa unidade, uma estrutura de segurança, em termos físicos e informáticos, apropriada e própria para isso. E, de repente, vamos retirar isto à PJ e colocá-lo debaixo de uma figura que está sob competência direta do primeiro-ministro, que pode nomeá-la ou exonerá-la. O problema é que a Constituição da República Portuguesa prevê a separação de poderes.

E é uma violação a esse princípio?

Na nossa opinião, sim. A informação do poder judicial não tem nada a ver com o Executivo. As pessoas focam-se no terrorismo porque está na moda. Mas grande parte da informação veiculada por esses canais incide sobre criminalidade económico-financeira.

O anúncio surge numa altura em que se fala dos Papéis do Panamá e da informação que, nesse âmbito, toca ou pode tocar o poder político.

Na prática, essa informação, em vez de ser passada diretamente à PJ, e para este ‘ponto único de contacto’ sob égide da PJ, vai diretamente para a secretária-geral do Sistema de Segurança Interna. E nós, polícia, serviços e forças de segurança, para termos acesso a essa informação teremos de pedi-la a uma estrutura dependente do poder político. Repito: isto não tem nada a ver com a pessoa. Mas a informação criminal diz respeito a duas entidades, em fase de inquérito: ao Ministério Público e aos órgãos de polícia criminal. Não pode nunca ser canalizada para pessoas que tenham influência política ou que estejam no Governo. Nunca. Isto é desconstruir o Estado de Direito.

Acredita que essa mudança possa materializar-se?

Tenho esperança de que não. Acredito que o primeiro-ministro e as pessoas que tomaram esta decisão foram mal aconselhadas, não foram esclarecidas quanto à perigosidade desta medida.

Já houve protestos contra esta medida. Podem repetir-se?

Esperamos não ter de fazer mais nenhuma ação, seria sinal de que as coisas estão no bom caminho.

A anterior direção da ASFIC defendia que a PJ estivesse sob orientação da Procuradoria-Geral da República. Mantém essa ideia?

É uma questão encerrada. Não é uma prioridade e não está em cima da mesa.

Têm acentuado a necessidade de retirar a PJ da lei geral do trabalho na Função Pública. Que dificuldades cria esse regime à investigação?

A carreira de investigação criminal não se compadece com o regime apertado daquela lei. Desde o horário de trabalho às formas de pagamento das horas extraordinárias e ao impedimento de serviços que temos, como o piquete.

E se essa lei fosse cumprida à letra?

A PJ pararia. O que está a acontecer é que os funcionários, imbuídos de um espírito de missão e abnegação, continuam a trabalhar, independentemente de essa lei vigorar.

Como é que isso se resolve?

Temos de encontrar um estatuto que adapte estas necessidades, que remunere as pessoas de acordo com o trabalho que desempenhem e que as motive. Grande parte das soluções da casa passam por um novo estatuto.

Que outros problemas existem?

Há também a questão das aposentações. Na PJ, as pessoas aposentam-se aos 66 anos.

Devia ser mais cedo?

Com certeza. O trabalho de polícia é de alto risco. Nalgumas áreas, saímos de manhã e não sabemos se regressamos à noite. Isso não se coaduna com andarmos nessas missões com 65 anos.

A própria dimensão do corpo da PJ é um problema?

Os quadros estão a 60% daquilo que deveriam estar. No caso da criminalística, os recursos estão a 10%. Já há sinais de que possa haver abertura de concurso, que espero que aconteça. O quadro de seguranças da PJ – que não tem a ver com o nosso sindicato, mas que nos preocupa – também está deficitário. O grande problema é a escassez de recursos humanos.

Essa escassez traz consequências para a investigação criminal?

Com certeza que tem. E mesmo que o esforço de quem está compense alguma coisa, não pode compensar para sempre.

Quer dizer que há processos que não avançam ou processos que ‘morrem’ por falta de investigação?

Poderá andar por um pouco de tudo. Sendo que estou em crer que cada um de nós dá o melhor. Sei, porque vivo com isso todos os dias. Um serviço de 24 horas corresponde a três dias de trabalho, e a partir de determinada hora já não somos pagos para isso, estamos a trabalhar por amor à camisola. As pessoas têm de ter consciência disto.

O Plano Nacional de Reformas prevê um investimento no combate à criminalidade económico-financeira. Acredita nesse investimento?

O cidadão comum já percebeu que a PJ é uma instituição basilar do Estado de Direito democrático e que tem de ser reforçada porque combate aquilo que está mal na sociedade. Temos bons sinais de que este Governo é sensível a isso. Se eu fosse político, e na atual conjuntura, apostaria na PJ.

Mas a investigação da criminalidade económico-financeira não é exclusiva da PJ.

Grande parte, sim.

Há processos importantes na mão da Autoridade Tributária. Como é que a PJ olha para essa situação?

Olhamos sempre com espírito de colaboração. Agora, há uma série de questões que se prendem com as competências reservadas da PJ. Se me dizem que sou competente para investigar certos crimes e depois há pessoas, organismos e instituições que violam a lei, distribuindo esses processos a outros órgãos de polícia criminal, estamos a desvirtuar o sistema, não estamos a cumprir a lei.

Porque acha que os processos acabam nesses outros órgãos de polícia criminal?

Não sei o que está na génese dessa decisão, mas poderá ser uma desculpa. Se o Governo está atento – e eu sei que está –, poderá ser uma grande bandeira dizer que investiu na corrupção porque se investiu em concursos para a PJ.

Há alguma polícia criminal que sirva de modelo?

Penso que a pergunta tem de ser feita ao contrário. O nosso modelo é uma referência e há muitas polícias na Europa que o têm como referência, porque separa a Justiça da segurança.

E a PJ está preparada para lidar com o terrorismo, tendo em conta a falta de experiência recente?

Não tivemos problemas com terrorismo local, a curto prazo. Tivemos as FP-25 (nos anos 80). Mas neste momento o fenómeno terrorista é global e a PJ está capacitada, tem elementos muito válidos. Voltamos ao mesmo: precisamos de investimento e meios humanos. Em termos de estrutura, a Judiciária tem profissionais com conhecimento único a nível nacional. Toda a gente fala de terrorismo na televisão – a PJ não, e é uma decisão da direção que não comentamos –, mas acreditamos no trabalho desenvolvido todos os dias. Sabemos que há um trabalho sério, muito importante, no combate ao terrorismo em Portugal, e esse trabalho é feito por esta polícia, não é feito por nenhum outro organismo.