A construtora brasileira Odebrecht tentou travar toda a cooperação de Portugal com o Brasil no âmbito do processo Lava Jato. Em dois requerimentos apresentados à Procuradoria-Geral da República (PGR), os advogados Daniel Proença de Carvalho e Francisco Proença de Carvalho – em representação daquela empresa –, defenderam que «o processo Lava Jato tem sido conduzido pelas autoridades brasileiras em violação da lei brasileira e de princípios fundamentais e de ordem pública do Estado Português».
Um dos exemplos dados foi o uso da ‘delação premiada’ – ou seja, a colaboração de suspeitos e réus em troca de redução da respetiva pena –, um instrumento jurídico que não existe em Portugal.
Perante os requerimentos, Joana Marques Vidal pediu um parecer ao Conselho Consultivo da PGR para saber ao certo quais as suas competências nesta matéria. O SOL teve acesso ao parecer emitido, que não podia ser mais claro: «O fair trial [direito a um processo equitativo] não pode fundar uma pretensão nacional de julgar sistemas jurídicos estrangeiros a partir das soluções historicamente adotadas no Direito português, que se revelaria, aliás, um paradoxo, atenta a raiz histórica e cultural dos referidos valores processuais». Ou seja, Portugal não pode julgar se um processo no Brasil está a ser bem conduzido à luz da lei portuguesa.
O Conselho Consultivo do órgão de cúpula do MP foi ainda mais longe: «Acresce que o julgamento do sistema jurídico estrangeiro à luz dos cânones do Direito nacional do Estado requerido, caso não tenha suporte no Direito internacional público, colide, ainda, com o artigo 27.º da Convenção de Viena».
Pareceres de Figueiredo Dias, Canotilho e Costa Andrade
A Odebrecht queria que Portugal recusasse auxílio ao Brasil, não cumprindo uma carta rogatória enviada por aquele país em que foram pedidas diligências que visam a empresa e suspeitos com ela relacionados. Ao que o SOLapurou, no pedido de cooperação solicita-se a «recolha de informação bancária em território nacional, relativamente a arguidos ou suspeitos identificados» na Lava Jato.
Os dois advogados portugueses, em representação da Odebrecht, fundamentaram o seu pedido com três pareceres – «subscritos, um deles, pelos professores Gomes Canotilho e Nuno Brandão, e, o outro, pelos professores Jorge de Figueiredo Dias e Manuel Costa Andrade e da professora auxiliar Susana Aires de Sousa e, um terceiro, de uma firma de advogados inglesa, Blackstone Chambers, em língua inglesa».
Pediam, por fim, que, se a PGR não aceitasse recusar as diligências, deveria ao menos permitir que os visados tivessem direito a contraditório em Portugal.
Duras críticas ao juiz brasileiro Sérgio Moro
Daniel Proença de Carvalho e Francisco Proença de Carvalho consideram que no Brasil não estão a ser cumpridos princípios fundamentais: «Designadamente, da garantia a um processo justo e equitativo assegurada pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em virtude de a prova recolhida naquele processo se basear em acordos de delação premiada, os quais conteriam cláusulas violadoras, além do mais, da legalidade penal, do direito ao silêncio, do direito à não autoincriminação e do direito ao recurso e da igualdade de armas»
Além das críticas à possibilidade existente no Brasil de diminuição da pena como prémio para quem colaborar com a Justiça, os advogados defenderam ainda que no Brasil há uma «instrumentalização da prisão preventiva como ‘coação’ dos arguidos, o que torna tais acordos [de delação premiada] inadmissíveis na ordem jurídica portuguesa».
Mas as críticas atingem ainda a forma como Sérgio Moro, juiz do Paraná que lidera a investigação: «As intervenções do juiz de instrução que conduz o processo deixam dúvidas sérias sobre a sua imparcialidade, independência e isenção».
Parecer sem considerações sobre a ‘delação premiada’
Logo na delimitação da análise pedida, o Conselho Consultivo da PGR refere que não pretende analisar a ‘delação premiada’ prevista pelo sistema brasileiro.
«Não serão apreciados problemas sobre o âmbito da prerrogativa contra a autoincriminação, os corolários do princípio do acusatório em cooperação judiciária passiva da República Portuguesa, articulação dessas garantias com soluções de plea bargaining [delação premiada] adotadas no ordenamento jurídico da República Federativa do Brasil», lê-se no parecer.
É também referido que a Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados daCPLP é um tratado que «vincula as partes e deve ser por elas cumprido de boa fé».
Eventual recusa tem regras
Fazendo sempre a ressalva de que os Estados que recebem pedidos de cooperação judiciária devem analisá-los consoante sejam pedidos de extradição ou interrogatórios, o parecer do Conselho dá conta de que a figura da ‘denegação de justiça flagrante’ – invocada pela Odebrecht – tem em conta os atos em concreto solicitados e não uma análise do processo que dá origem a esses pedidos e que corre num outro país.
Ou seja, Portugal pode recusar cumprir uma determinada diligência caso esta crie uma situação que ponha em causa os direitos fundamentais segundo a lei portuguesa. Tal recusa em executar uma diligência não pode apenas ser justificada com o facto de o processo no país de origem não ter respeitado no passado questões que não estão conforme a legislação nacional: «A apreciação do motivo de recusa tem de se restringir à valoração do concreto pedido de auxílio judiciário.
Para efeitos de apreciação do motivo de recusa, as autoridades judiciárias do Estado requerido [Portugal] não estão legitimadas a empreender uma sindicância dos atos processuais praticados no processo penal pendente no Estado requerente [o Brasil] à luz do respetivo ordenamento jurídico».