Por que não devemos revogar o Acordo Ortográfico

Já lá vão 26 anos desde a assinatura do Acordo Ortográfico (AO) por todos os países da CPLP e sete desde que o Parlamento português decidiu que entrasse em vigor ao fim de um período de transição e adaptação que terminaria em maio de 2014. Foi ratificado já por todos os países da CPLP, menos…

Eis senão quando, nos últimos dias, reentrou com estrondo na agenda nacional, pela inesperada mão do Presidente da República. À qual logo se agarraram os contestatários de sempre, que pugnam pela revogação, chegando a invocar, baseados não se sabe em quê, que a maioria dos portugueses não se revê neste AO (sim, imagina-se que nem devem dormir…).

Mais do que andarmos a discutir se é legal ou inconstitucional (até há quem esgrima o argumento de que o AO foi mais um ato de despotismo do Governo de José Sócrates, que tem muitos pecados mas neste caso, na verdade, se limitou a cumprir um compromisso do Estado, que aliás foi transversal a governos de diferentes cores políticas), devíamos era olhar para a frente e tratar de melhorar a aplicação do Acordo. Através de uma autoridade na Língua portuguesa, que analisasse as palavras cuja grafia é mais discutível. A fixação de regras e a resolução de problemas nesta matéria cabe aos linguistas, que produziram este AO.

Se há problemas, portanto, resolvam-nos. Mas tendo sempre presente que a Língua não é imutável, nem os acordos entre Estados são perfeitos, e deve ser feito um esforço de harmonização no seu tronco comum, independentemente de cada país continuar a ter as suas particularidades, tal como está previsto no AO.

Pelo meio, talvez seja bom pensar nas crianças e jovens que já estudam há vários anos segundo a nova grafia: da mesma forma que ninguém acha bem que cada governo que entra mude currículos e formas de avaliação, também não parece muito feliz a ideia de alterar ciclicamente a forma como escrevem. Para confundir as suas cabeças, já chega a nova terminologia gramatical, essa sim do domínio de marcianos e que não mereceu indignação semelhante à do AO.

A quem interessar e quiser formar opinião, será útil gastar uns minutos de leitura no portaldalinguaportuguesa.org – onde se pode ver que andamos a discutir e a fazer acordos ortográficos há 100 anos. Entre as normas decididas no princípio do século XX, e não aceites pelo Brasil, estava por exemplo a expulsão das letras k, w e y do alfabeto. Imagina-se como isso deve ter custado aos amantes da ‘valsa’, já para não falar dos ‘Venceslaus’ e dos ‘Valteres’ deste país. Tal como agora, mas ao contrário: se não fosse com o mais recente AO, muitos jovens se interrogariam por que não podiam escrever à-vontade kuduro, kispo ou windsurf.

Rezam as crónicas que Fernando Pessoa continuou a escrever philosophia, enquanto nas escolas passou a ensinar-se filosofia. Hoje, parece-nos estranha a teimosia do grande poeta, mas ele estava no seu direito, tal como os atuais contestatários da nova grafia ou o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, a quem ninguém condenará certamente se continuar a escrever os seus discursos sem AO. Mais ano ou menos ano, mais quarto de século ou menos quarto de século, a questão há-de resolver-se por si. De tal forma que daqui a nada seremos interpelados pelos nossos filhos ou netos: “Vocês escreviam acção e excepção? Mas que cotas…”.

paula.azevedo@sol.pt