Naturalmente, estamos todos cheios de pena (e caso sobre dúvida esta pena vem carregada de ironia) deste grupinho que durante quase duas semanas foi forçado a ver todos os dias aqueles que vão ser os filmes mais cobiçados do ano, apertar a mão a um sem número de vedetas, bebericar flutes de Pieper-Heidiseck, engolir canapés nos foyers do Grand Palais Lumière onde decorrem as galas oficiais, bem como muitas jantaradas tardias nos restaurantes das praias dos muito exclusivos hotéis Carlton, Majestic ou Martinez. Quem sabe até escapadas às villas nos montes em redor da baía de Cannes.
Já para não falar da exposição a milhares de flashes fotográficos durante a subida da passadeira vermelha ou da solicitação para as selfies da praxe. Não se preocupem, pois esse enorme sacrifício chega já ao fim com a cerimónia de encerramento amanhã, altura em que será conhecida a Palma de Ouro 2016 e os restantes premiados. Mas antes as nossas apostas. Preparados?
As deceções
Separemos então o trigo do joio, o cinema como forma de arte, emoção e intenção, das propostas falhadas, seguramente plenas de intenção, mas possivelmente desinspiradas ou até mesmo grotescas (também houve disso…).
Primeiro, o joio. O irregular Olivier Assayas falhou o pé e ficou longe do excelente As Nuvens de Sils Maria, o seu anterior filme. Em Personal Shopper não teve inspiração suficiente para criar uma história credível nesta sua tentativa de criar um diálogo com as alminhas. Sejamos claros, a ideia de limitar grande parte da interpretação de Kristen Stewart a uma intrigante discussão via SMS até pode ter o seu lado de provocação. Pena isso não resultar no filme.
A bem dizer não se esperava muito de Neon Demon, a nova incursão do enfant terrible dinamarquês Nicholas Winding Refn no território do horror burlesco. É aquele caso em que, se virmos o trailer, já não seremos surpreendidos. O que não é bom, porque a ideia de uma sátira ao mundo da moda, dominado pelo lema ‘a beleza não é importante’, é tudo, com o sacrifício da deusa virgem (com a casta Elle Fanning) mediante o apetite voraz das colegas é algo que necessita de ser trabalhado para evitar o lugar-comum. Aliás, os arrebatados apupos com que o filme foi recebido demonstram um pouco essa recusa do lado mais grotesco e vaidoso de Refn.
Falta ainda aplicar um valente corretivo a Pedro Almodóvar, por se espalhar ao comprido naquele filme em que todos desejavam um verdadeiro comeback ao sucesso da sua trilogia melodramática de Tudo Sobre a Minha Mãe, Fala com Ela e Volver. Agora, fazer uma salada anacrónica e decorativa, temperada com elementos de todos eles, ainda que inspirados nas short stories de Alice Munro, bem como em todas as suas referências cinematográficas, acaba por resultar apenas numa sugestão de melodrama, onde a emoção não se exprime verdadeiramente. É pena, todos queríamos o melhor de Almodóvar.
Sob o signo de Aquarius
Sim, confirmou-se, o único filme em língua portuguesa acabou mesmo por ser o evento deste ano em Cannes. Não só por ser o mais emocionante e nostálgico retrato da sociedade brasileira de que temos memória, mas também aquele que torna mais claros os seus próprios vícios e perigosos anticorpos. Tudo isso soube ver e ilustrar de uma forma ao mesmo tempo corajosa e cuidadosa, o ex-crítico de cinema Kléber Mendonça Filho, que em Aquarius faz uma espécie de poema de amor à sua terra, Recife, não deixando de anotar as suas maiores preocupações. E, claro, temos Sónia Braga, de longe a mais intensa prestação e o mais que provável prémio de interpretação. Aliás, o filme é ela, como é o apartamento onde ela mora, o edifício Aquarius, na avenida Boa Viagem, na orla de Recife, que tem a idade dela e que é agora ameaçado pela pressão imobiliária que já projetou um arranha-céus com apartamentos de luxo.
Fora da sala de cinema, Aquarius provocou naturalmente alguma agitação no cenário político brasileiro. Foi o próprio Kléber Mendonça Filho que fez notar, durante a nossa entrevista, que já tinha sido criado um #BoicoteAquarius, por pessoas que não viram o filme, mas que isso teve o efeito contrário.
As outras pérolas de Cannes são American Honey, o primeiro filme da britânica Andrea Arnold nos EUA, e Toni Erdmann, da alemã Maren Ade, também ela virgem em Cannes, e confessa admiradora do português Miguel Gomes.
Em American Honey temos a improvisada deriva americana de uma juventude inquieta, acompanhada por um alucinado Shia LaBeouff, que se refugia num certo niilismo que quer esquecer com drogas e música techno, mas também, no final, com o tema irresistível de Lady Antebellum que dá o título ao filme. Já em Toni Erdmann vale dizer que é o filme alemão do momento, e não só por mostrar uma naked party, mas também pelo irresistível tema de Whitney Houston, ‘The Greatest Love of All’, cantado com garra por Sandra Huller, outra candidata a melhor interpretação feminina.
Mas tivemos ainda o poema cinematográfico de Paterson, de Jim Jarmusch, uma espécie de kaiku japonês, precisamente por os destinos do poeta condutor de autocarro, interpretado com a serenidade desejada por Adam Driver, o ator do momento, que em breve irá visitar o nosso país para a rodagem do novo projeto do produtor Paulo Branco, The Man Who Killed Quixote, de Terry Gillian.
E o que dizer ainda do realismo social de I, Daniel Blake, de Ken Loach, que nos fez rir a chorar, na sua 13.ª presença na competição e da qual não deverá sair sem um prémio. Num tom próximo, há que referir o realismo de Manila, visto pelo filipino Brillante Mendoza, em Ma’Rosa. E não podemos esquecer o vigor do cinema romeno, nas diversas e igualmente excitantes propostas de Sierranevada, de Cristi Puiu, e Bacalaureat, de Cristian Mungiu, vencedor da Palma de Ouro em 2007, com 4 Meses, 3 Semanas, 2 Dias.
Resta esperar para conhecer o que se passará na cabeça de George Miller. Poderá American Honey prolongar esse seu apetite on the road? Quem sabe? Mas há que não esquecer: duas essenciais cartas joker estão ainda por jogar. É que podem muito bem estar reservadas as Palmas para Verhoeven e ou Farhadi.