“Queria que este filme cheirasse a sexo”

Já foi há uns meses que o realizador francês nascido na Argentina esteve em Lisboa, no Indie, para apresentar “Love”, que agora chega às salas portuguesas. Um filme explícito, que exige uma conversa igualmente explícita, sobre sexo, sobre 3D e sobre os seus mestres do cinema erótico.

É claro que “Love” é um filme politicamente incorreto. É claro que fala de sexo e mostra como se faz. Até aqui nada de novo, é claro. Gaspar Noé cita, bem a propósito, “O Império dos Sentidos”, como uma das referências do cinema erótico. Salvaguardadas as devidas diferenças, “Love” merece igualmente esse destaque, de marco do cinema erótico. O efeito 3D permite-nos um contacto diferente com estas personagens à procura do amor. Ou dos seus limites. Mas este filme é um marco também pela ousadia de ser explícito, sem ceder à exploitation do género. De resto, o cinema de Gaspar Noé tem qualquer coisa de arrebatador que se torna irresistível. Recordamos bem a célebre primeira exibição de “Irreversível”, em 2002, no Festival de Cannes, em que bem mais de metade da sala sucumbiu diante da violência destilada.

Encontrámo-nos pela primeira vez em Cannes, para a entrevista de “Irreversível”. Lembro-me que nessa altura falou de algo semelhante a este projeto. Foi essa a origem de “Love”?

Não, concebi este projeto antes de “Irreversível”. Depois de “Seul Contre Tous” (a sua primeira longa, de 1998) quis fazer “Enter the Void – Viagem Alucinante”. Só que esse era um projeto muito dispendioso, por isso, pensei em algo low budget, que pudesse filmar em Paris de forma rápida. Escrevi o primeiro tratamento de “Love” – na altura chamava-se Danger -, e mostrei-o ao Vincent [Cassel] e à Monica [Bellucci]. Antes de lerem as cinco páginas disseram-me que sim, mas quando o leram disseram que não, mas que, ainda assim, estariam disponíveis para outra coisa. Foi nessa altura que cheguei à ideia de “Irreversível”. O problema é que tinha de preparar o filme em cinco semanas e não tinha guião. Quando começámos a filmar tinha apenas três páginas de guião…

É interessante referir “Enter the Void” porque me parece que entre estes filmes todos existe algo orgânico que os une, como uma trilogia.

Muitos cineastas concebem três projetos de uma só vez, talvez a pensar nas dificuldades de financiamento para todos os filmes. É uma espécie de segurança, caso um não possa avançar. No entanto, é interessante porque, em todos os filmes, a personagem masculina é semelhante – o Vicent Cassel, em “Irreversível”, o Nathaniel Brown, em “Enter the Void – Viagem Alucinante”, e o Karl Glusman, em “Love”. São sempre tipos altos e bem-parecidos, que só querem festa, tomar drogas e fazer amor. Pode não ser muito inteligente, mas é um tipo cool que vive o momento.

Será, de certa forma, uma aproximação biográfica de Gaspar Noé?

É algo mais natural, porque eu tenho uma identidade que mostro nos meus filmes, mas no caso destas personagens eles são mais comuns. Por isso, quando me perguntam se este é um filme sobre mim próprio, digo que sim, em parte. Digamos que é mais a história de um irmão mais novo, algo que posso aprovar ou não, mas que reconheço ser-me próxima.

Podemos dizer que o ponto de partida para este projeto foi filmar um casal a fazer amor?

Queria ver no ecrã imagens que me parecessem reais, do que é fazer amor na vida real. Queria imagens carnais que cheirassem a verdade, queria que este filme cheirasse a sexo na vida real. Normalmente, quando vemos sexo no ecrã, não é bem interpretado, parece algo distante.

Quer dar um exemplo do que não vemos normalmente?

Nunca vemos um filme em que uma mulher faz amor durante a menstruação. Há muitas coisas que acontecem na vida real, mas que estão totalmente ausentes do cinema erótico ou porno clássicos.

Impôs alguns limites ou deixou ao critério dos atores?

Com a exceção de uma cena que acharam que seria excessiva – fazer sexo com outro rapaz, que depois evoluiu para um travesti – tudo o que vemos no ecrã é algo que já vi ou que amigos meus experienciaram. Quis fazer algo que fosse absolutamente normal.

De qualquer forma, a cena do travesti será talvez a mais ousada, não?

É aí que eles percebem que ultrapassaram os seus limites. Para além do que eram as suas intenções iniciais. É como aquela conceção de amor que algumas pessoas têm: “Aquilo que não mata o casal deixa-o mais forte”. Mas há experiências em que se perde a intimidade.

Percebe-se inclusive que o ator estaria a atingir os seus limites enquanto ator…

Ambos os atores não são nada exibicionistas ou adictos sexuais. São bastante normais. Acho que ambos embarcaram nesta experiência sabendo ao que iam e talvez até para exorcizarem algumas feridas do passado. De resto, sabiam que iríamos fazer um filme sobre a vida real. Nesse sentido foram muito bravos, pois sabiam que independentemente do resultado final estas imagens acabariam por aparecer na net. Ajudou o facto de ambos terem famílias inteligentes. De resto, o que eu queria era encontrar pessoas carismáticas e inteligentes.

Isso leva-me a perguntar: como decorreu o casting? Foi difícil encontrar este casal?

Inicialmente queria encontrar um casal, pois seria mais fácil, ou um ex-casal, mas acabei por não conseguir. Como sou muito instintivo, não acredito muito em usar um diretor de casting, por isso fui a festas e perguntei a amigos se conheciam alguém com esse perfil. Conheci alguns via Skype e fui percebendo se funcionariam bem no filme ou não.

Fez algum casting das zonas genitais dos atores?

Não, é mesmo o pénis do ator. É claro que já me perguntaram se usei algum ator americano para o dobrar nas cenas dele, por ser circuncidado. Isto porque 8% dos americanos são circuncidados. Mas isso não era um problema para mim. Apenas queria um ator que falasse inglês. Por acaso foi um ator americano. A verdade é que nunca tinha visto o Karl nu antes do primeiro dia de rodagem. Apenas lhe perguntei se tinha pelos púbicos, não ensaiámos nada.

O sexo era improvisado?

Sim, foi tudo improvisado. Mas não a história, pois tinha seis páginas escritas.

A rodagem decorreu de forma cronológica, começando com a longa cena de masturbação?

Essa cena não deveria estar no início. Aconteceria mais para o meio do filme e abrandaria o seu ritmo. Ao colocá-la no início, durante a montagem, a ideia era poder pensar que era um sonho que ele estava a ter. É uma cena que não estava no guião e que filmámos no final. Todas as outras cenas de sexo foram filmadas durante a primeira semana. Isto tudo com uma equipa de 12 pessoas, mas durante essas cenas apenas três ou quatro.

Estava clara a ideia da fronteira da pornografia?

Claro. De resto, para mim, a cena mais erótica e que queria muito apanhar era um close-up dos rostos quando se estavam a beijar no ménage a trois. Quando vi “A Vida de Adèle” (de Abdellatif Kechiche, Palma de Ouro em Cannes, em 2013) achei que os beijos e abraços eram mais sexy que as cenas de sexo.

No final do filme agradece a Nicolas Winding Refn, a Scorsese, a Kôji Wakamatsu…

Sim, o Wakamatsu [conhecido também pelo seu cinema erótico e pervertido] foi uma inspiração, não só fez grandes filmes com cenas de sexo, mas produziu, por exemplo, “O Império dos Sentidos”, do Oshima. Outros dos agradecimentos que fiz foi por me terem colocado em contacto com outros. Ao Carpenter agradeço o facto de me ter dado os direitos da sua música, o David Lynch também aceitou oferecer-me os direitos de uma música que queria usar no final, mas achei que poderia atrair demasiada atenção, por isso acabei por usar as “Variações Goldberg”, de Bach, por Glenn Gould. Mas diria que o que me serviu de inspiração foram sobretudo cenas da vida real e exemplos de filmes 3D que não funcionaram.

Quais foram os filmes 3D que mais o inspiraram?

O “Pina”, o “Gravidade”… Mas também os filmes antigos, como “Máscaras de Cera” ou “O Feiticeiro de Oz”. Mas eu não estava a copiar ninguém, estava a tentar evitar erros de outros que fizeram mais filmes em 3D.

Mencionou “O Império dos Sentidos” que, a meu ver, até “Love” é o filme mais intenso da história…

O que ajuda esse filme é que se trata de um filme de época japonês, com guarda-roupa, que na Europa é considerado um filme de arte asiático, o que não é o caso no Japão, onde foi banido durante muitos anos e depois surgiu numa cópia com cortes. Não sei se alguma vez irão editar uma versão completa no Japão. No entanto, passa na televisão francesa com frequência. Não me lembro de ver cenas de sexo explícito apresentadas com alegria num contexto normal. É um filme muito sensual e com cenas explícitas exibidas num contexto comercial. E é um filme baseado numa história verídica. Pena é não ter um final positivo.

Ficou com a sensação de que filmar em 3D não era assim tão difícil? Ou foi uma experiência difícil?

O que foi difícil foi não perceber o tempo para carregar a câmara, mudar as lentes. Por isso acabámos por fazer o filme todo com uma lente e fizemos o zoom na pós produção. Há vários aspetos técnicos do 3D que são demasiado pesados, como as steady cameras.

Qual era o efeito que procurava ampliar ao filmar em 3D?

Quando vemos o filme em 3D não podemos deixar de sentir alguma estranheza. Se o contraste estiver correto e as luzes brilhantes, assemelha-se mais a um espetáculo de marionetas do que se fosse em 2D. Por outro lado, a visão não é tão real, porque sublinha essa profundidade. E temos os óculos que lhe dão uma dimensão maior de sonho. Sobretudo quando não temos legendas, porque parecem flutuar no espaço do um ecrã em 3D.

A cena da ejaculação, filmada na direção do espetador, ganha outra proporção em 3D. Foi uma intenção provocar?

Na verdade, quando terminei “Enter the Void”, foi quando “Avatar” estreou. E várias pessoas me disseram que era uma pena não ter rodado “Enter the Void” em 3D. Porque já aí existia uma cena de um pénis em ejaculação, mas que acabámos por não rodar. Desta vez não quis deixar de fazer essa cena. E, na verdade, temos duas imagens do pénis a ejacular: a primeira foi filmada com um verdadeiro ator no primeiro dia de rodagem, na segunda usei parte do que já tinha filmado antes.

Estava ciente de que este filme seria difícil de vender no mercado mainstream?

Sabia que não seria fácil, mas não esperava que o filme fosse banido em alguns países. Por exemplo, na Rússia o “Irreversível” estreou em sala, que é bem mais chocante. Apesar do filme ter sido comprado, foi banido pela censura e até o ministro da cultura russo veio dizer que, enquanto ele fosse ministro, este filme não seria exibido na Rússia. Na Turquia, “Irreversível” foi um blockbuster, mas este nem sequer foi proposto à censura, porque se sabe que, com este governo, nunca irá passar. Não percebo, a representação verdadeira de fazer amor parece ser mais perigosa do que documentários em que se mostram verdadeiras mortes.

É estranho como as armas se sobrepõem a algo tão natural…

Terei tocado em armas umas duas dezenas de vezes na minha vida, mas sinto o meu sexo todos os dias. Portanto, umas vinte mil vezes… (risos)

Há uma cena em que Murphy pergunta a Electra qual o seu filme favorito e ela responde “2001, Odisseia no Espaço”. Também é esse o seu filme favorito?

Claro que sim. É uma bíblia. Quando o vi pela primeira vez era ainda muito jovem, ainda na Argentina, mas foi esse filme que me fez querer fazer cinema. E também tomar drogas psicotrópicas.