Antes de se erguer, um imóvel teve que ser equacionado, a cabeça de alguém a projetar-lhe as arestas, os pilares, e muito mais – do lugar que ocupará o sistema de ventilação à organização espacial do parque de estacionamento, no caso de haver um.
Quantas folhas são rasuradas, deitadas ao caixote de lixo mais próximo – em alguns casos serve o chão – quantos bicos de lápis não se partiram? Essas plantas, essas listas de materiais que formam orçamentos para cliente aprovar, essas maquetas, no maior número de escalas possível, que idealizam as dimensões. Tudo papel que vem da mente de alguém. E, convém dizer, que esse alguém, provavelmente, remeterá esses estudos para uma gaveta recôndita, algures no seu escritório onde nem secretária entra. A gaveta, com o acumular, dará origem a uma estante, antes de evoluir para um sótão onde já começa a falta espaço.
Sobretudo se esse lugar pertencer a Álvaro Siza Vieira, um dos maiores nomes da arquitetura mundial, que acaba de entregar o seu arquivo ao Centro Canadiano de Arquitetura de Montréal, à Fundação Calouste Gulbenkian e à Fundação de Serralves, a qual decidiu não esperar mais. Matéria-Prima: Um Olhar Sobre o Arquivo de Álvaro Siza está desde quinta-feira na Biblioteca de Serralves. Por lá se mantém até 18 de setembro.
Arquivo ou tesouro, é também dúvida que fica para alguém dissipar, esse que não foi repartido, ou seja, não foi dividido igualmente pelas três instituições às quais foi doado. Coube ao Centro Canadiano de Arquitetura a parte mais significativa, para Serralves vieram, entre outros materiais, uma enorme série de desenhos, estudos, cartas, tudo quanto nos permita ser mosca e invadir a ambiência laboral de Álvaro Siza, a luz de presença do seu escritório, que tudo testemunha. Pelo menos é o que nos diz André Tavares, comissário da mostra, que não hesita em confirmar que percorrer estes corredores é passear na intimidade de Álvaro Siza. Uma intimidade profissional, obviamente: «Não tenho dúvidas sobre isso, é isso mesmo, uma esfera íntima do trabalho, não é tanto em relação à pessoa, ainda que a pessoa e o trabalho se confundam. É uma exposição sobre a prática do fazer, não é uma teoria do arquiteto Álvaro Siza. Mostra-o literalmente no trabalho». Tavares não cai neste cargo por obra do acaso. Foi o seu trabalho enquanto investigador, rato que adora consumir o pó dos arquivos, que o trouxe de novo a Serralves: «Tinha feito, o ano passado, uma exposição sobre a Casa de Serralves e a sua construção, nos anos 30, e esta vem um pouco na sequência desse trabalho e de uma certa colaboração que tenho vindo a ter com a fundação, no que diz respeito à arquitetura e ao arquivo. Já trabalhei com o arquivo de vários arquitetos enquanto investigador, essa relação levou-me até aqui», enquadra.
Ceder para libertar
André Tavares, melhor que ele ninguém, explica o que se pode ver nesta exposição. «Essencialmente mostra correspondência com os clientes e como essa relação pode ser profícua na afinação no trabalho, mostra desenhos incríveis, a introdução da informática no processo de trabalho, por exemplo. É uma exposição exploratória, é uma primeira visão do potencial que o arquivo pode vir a gerar em termos de compreensão e descoberta da obra do arquiteto Álvaro Siza. Está tudo por descobrir», diz Tavares.
Agora que estamos tangentes à fórmula de trabalho de Álvaro Siza, como se um drone, sem barulho nem tremor, lhe pairasse sobre a cabeça, é altura de considerar o que daí pode advir.
Álvaro Siza Vieira, ainda que seja rei, nunca irá nu, porque dificilmente chegará o dia em que lhe compreendamos toda a obra, em que saibamos de cor todas as suas latitudes. O gesto altruísta de doar o arquivo, pode bem, neste caso, ter gerado dor. André Tavares sugere o oposto, como que avisando que entregar o arquivo traduz-se em alguns quilogramas a menos. «Assinala um momento importante. Obviamente ele continua a projetar e esperemos muitos e maravilhosos edifícios nos próximos anos, mas durante muitos anos a perceção da obra do Álvaro Siza esteve sempre demasiado próxima de si, do Álvaro Siza enquanto autor. Neste momento já não é preciso ir ao escritório dele. Isto para ele pode representar um retorno muito interessante e outras leituras, há uma certa libertação do peso da própria obra», explica o comissário da exposição. Serralves é o escritório temporário de Álvaro Siza. Pelo menos até setembro.