Entre as saborosas aventuras de Lucky Luke, há uma (Daily Star) em que o cowboy defende um ingénuo diretor de jornal que acabara de descobrir que as suas notícias incomodavam os senhores da terra. Num dos momentos da história, sopra o cano da arma fumegante que acabara de disparar uma rajada de tiros e avisa: «Nada de ofender a liberdade de imprensa!».
Longe de mim a ideia de se impor à lei da bala a liberdade de expressão e de imprensa, mas, para iniciação à vida democrática, aconselho vivamente a leitura desse álbum de BD a Gabriela Canavilhas e Cristiano Ronaldo. E a todos quantos, tendo obrigação de o fazer pelas funções que desempenham, não disseram uma palavra para censurar, no mínimo, o que ambos fizeram esta semana.
A deputada socialista, recorde-se, usou o Twitter para criticar uma reportagem do Público sobre a manifestação da Fenprof de apoio à escola pública e aconselhou o jornal a despedir a jornalista autora da peça. Sem nunca pedir desculpa, veio depois dizer que foi apenas «um desabafo» numa rede social marcada pela "informalidade", terminando a tentar virar o jogo, fazendo-se de virgem ofendida, questionando por que razão um deputado é permanentemente escrutinado, mas os jornalistas não. Alguma das figuras socialistas de verdadeiro berço democrático que lhe lembre, por favor, que ela foi eleita e que a imprensa é o meio que a opinião pública tem numa democracia de fiscalizar o poder político. E que é graças a essa democracia que ele é deputada e que, apesar dos esforços do seu líder espiritual José Sócrates, em Portugal ainda não se consagrou o direito de mandar calar quem nos desagrada.
Três dias depois, foi a vez de Ronaldo arrancar um microfone a um jornalista da CMTV que o interpelava e atirá-lo a um lago. As imagens correram mundo, as redes sociais gargalharam e inventaram-se anedotas. Com duas ou três exceções, não se ouviu uma crítica. Se tivesse sido um qualquer deputado ou um atleta de outra modalidade, logo as televisões teriam ido ouvir o exército bem pensante da Pátria, incluindo politólogos e sociólogos. Mas como é ‘o nosso’ Ronaldo, parece que não faz mal. Diz-se que foi um "ato irrefletido", coitado, que «a pressão» do Euro é muita e que «ele até tem um contencioso com o CM». Além disso, parece que o jornalista é que provocou e infringiu as regras, pois os assessores da Seleção nacional bem tinham avisado que nenhum jogador iria fazer declarações – aquilo era só para os jornalistas acompanharem, qual procissão com o andor Ronaldo à frente, e passarem em direto para os portugueses apreciarem.
Ronaldo pode ter muitas razões de queixa do CM, mas nada desculpa o que fez. Tem muitos meios para se defender das notícias do jornal que todos os dias lhe arranja uma namorada ou acompanhante. E a Seleção também tem meios para fazer ver aos jornalistas que, se aceitaram as regras, têm de as cumprir e não armarem-se em pistoleiros.
Mas o que preocupa é que o raciocínio que presidiu ao gesto de Ronaldo e levou quase toda a gente a não relevá-lo é o mesmo que preside a decisões de injetar horas e horas de diretos televisivos sobre a Seleção ou interromper conferências de imprensa importantes (como aconteceu na quarta-feira, quando Mário Centeno falava sobre a GGD) para se dar a conhecer a lista de jogadores que vão entrar em campo.
Caímos no paradoxo de a UEFA ter instaurado um processo à Seleção porque Ronaldo tirou uma selfie com um espetador que entrou em campo no final do jogo com a Áustria, mas nada acontece quando ele atira o microfone de um jornalista para o fundo de um lago. É futebol, é Portugal, ninguém leva a mal – parece ser o lema.
O que se passou nestes casos devia ser objeto de mais reflexão e discussão. É que os jornalistas e os media não são intocáveis, tal como os jogadores e os deputados, mas a liberdade de imprensa é.