Mal nos encontramos, cumprimentos feitos, José Cid atira com um “Ai estou tão contente!”. Parece um miúdo, tal é a satisfação. “Então porquê?”, perguntamos. “O cavalo com que terminei a minha carreira desportiva e que, no final, mandei para Espanha onde vive no campo com três éguas teve hoje o primeiro potro!” A partir daqui, os primeiros minutos da entrevista são passados a ver fotos e a ouvir histórias sobre este cavalo e sobre a região de Espanha onde o animal se encontra. José Cid pode ser o homem de “Favas com Chouriço”, “Na Cabana Junto à Praia”, “Como o Macaco Gosta de Banana” ou “Cai Neve em Nova Iorque”, que neste momento percorre o país na tournée Arenas, que até setembro o levará a praças de touros do norte a sul do país. Mas antes durante anos, paralelamente a tudo isto, houve também o cavaleiro. E é por aí que começamos conversa.
Os cavalos são uma paixão muito antiga para si?
Sim, os de obstáculos, sobretudo. Sempre andei a cavalo, fazia cowboiadas com os amigos, tipo índios e cowboys, caçava lebres… A partir de 1976 comecei a entrar em competições, sempre a montar muito mal, mas fui melhorando até que, em 1991, fui vice-campeão nacional de salto em altura, a 2,10m, o que é de nível internacional.
Isso sem nenhuma formação?
Sim, fui autodidata. Via os mais velhos e fazia-lhes perguntas. E seguia os conselhos que me davam.
Ainda monta a cavalo?
Já não, só trabalho cavalos no chão. Faço trabalho com rédeas que é algo que faz os cavalos muscularem-se. Aliviamos-lhes o dorso, mas eles musculam-se na mesma. E depois tenho um cavaleiro profissional que os trabalha em pista. É o António Vozone, um cavaleiro olímpico, um dos melhores de sempre.
Mas quando diz que, hoje em dia, não monta, isso quer dizer que nem sequer sobe a um cavalo?
Pois. E até tenho dois cavalos muito mansos, mas já não me sinto muito atraído. A equitação tirava-me muita energia para os meus concertos, e eu já não tenho energia para fazer as duas coisas como fazia nos anos 1980 e 90. Hoje chego aos concertos com muito mais energia, não vou stressado, a minha voz está melhor. Mas claro que é-me mais fácil engordar agora, porque antes trabalhava dois ou três cavalos por dia. Curiosamente agora até estou mais magrinho.
Para um homem que amava montar, não o fazer é o quê?
É frustrante. Eu gostava era de montar em pista e não o fazer é completamente frustrante. Às vezes até sonho que estou a participar em provas e acordo a dizer à Gabriela [Carrascalão, mulher] que vou recomeçar a montar – ainda por cima um dos dois cavalos que agora tenho seria ideal para o fazer – mas ela diz-me logo que nem pensar, que ficaria em pânico, que tenho 74 anos.
Então está mesmo a pensar nisso?
Não. Mas sonhar ainda não paga imposto…
Mas o que o fez deixar de montar?
Senti uma espécie de aviso dos céus. Um dos meus cavalos adoeceu e nunca mais recuperava, começou a coxear sempre. O outro, passados uns meses, fez um esforço de tendão que é uma lesão que torna um cavalo inviável para as pistas. Recuperei-o e dei-o a um amigo e a função dele agora é ser pai. Achei que os dois cavalos adoecerem assim, num curto espaço de tempo, era um aviso. E, ao mesmo tempo, tive para aí um ano sem cavalo e sem montar. Ao fim desse ano de paragem, já eu tinha desistido de montar, aparece-me um potro, o melhor cavalo que alguma vez tive. Montei-o umas poucas vezes, mas já tinha perdido o ritmo. É um cavalo fantástico, que pode levar o António Vozone aos Jogos Olímpicos.
Apanhou muitos sustos enquanto montava?
Só quem não monta é que não tem esses sustos. Mas nem tive muitos. Tive uma vez uma queda grande, que lembro-me de bater no chão, olhar para o céu, e pensar que estava tetraplégico. Mas depois mexi um pé e percebi que não. Mas tive problemas nas cervicais, os cavaleiros têm todos mazelas no corpo.
Esta tournée que está a fazer agora, pelas arenas de Portugal, é, de alguma forma, uma maneira de misturar os seus dois mundos: os cavalos e a música?
Só ao nível do espaço. Mas quando vou, por exemplo, cantar ao Campo Pequeno, e já lá dei sete concertos seguidos, nem sequer estou a pensar que já lá tourearam. Para mim são espaços para cantar. Esta tournée surgiu porque tenho um amigo que é diretor de 12 praças de touros e convidou-me. E eu pensei que até tinha um projeto que era capaz de se encaixar nas praças de touros, e que é ser DJ de mim próprio. Hoje os DJs até invadem o espaço dos cantores e das bandas – e ainda bem porque os DJs fazem festas, ir ouvir um DJ é ir para uma festa – mas é isto que pretendo fazer: uma festa em que sou DJ de mim próprio, mas onde também canto. Ou seja, nestes concertos passo discos meus, tenho um teclado com loops de DJs e canto por cima. E o público está ali numa espécie de noite de karaoke comigo. Arrisco-me a dizer que isto é completamente inovador, nunca ninguém no mundo o fez e duvido que alguém em Portugal o pudesse fazer. Estou ali sozinho no palco com uma produção cheia de leds e ecrãs. Já fiz isto em discotecas e correu sempre bem – as pessoas saltam, cantam, dançam.
Ainda continua a ser isso que o entusiasma para subir a um palco?
[pega no telemóvel e mostra um vídeo de uma passagem sua por uma discoteca] É isto. Malta que se está a divertir, até pode estar com umas cervejolas a mais, mas isso é típico em todos os concertos. Só cervejolas, não é mais nenhum aditivo que não concordo nada com isso. Mas é uma forma de fazer outro tipo de espetáculo. Um artista tem de se ir reinventando, não posso ser uma pescadinha de rabo na boca, a repetir tudo de concerto para concerto. E até posso falhar, mas tenho de tentar, de ir mudando as coisas. Eu sou muito aquariano.
Isso quer dizer o quê?
Os aquarianos pensam muito no futuro. Não sou nada saudosista. Até porque nem me lembro do que fiz há seis anos.
Mesmo não sendo saudosista, o público obriga-o a um certo saudosismo quando lhe pede – como pede sempre – que regresse a determinadas canções.
Sim, o público gosta que cante as minhas canções antigas e eu não me aborreço nada com isso porque nunca as canto da mesma maneira. Venho de uma formação jazzística, canto pop porque gosto de escrever estas canções e de ver as pessoas felizes, mas a minha formação é jazzística. E nunca canto da mesma forma, isso faz com que não me canse das canções. Há pessoas que são muito formatadas em palco – até para beberem um copo de água têm um momento exato – eu não sou nada assim, sou completamente espontâneo. Aliás, nunca levo alinhamento para os meus concertos.
Isso para os músicos deve ser um pesadelo.
Eles vêm atrás, já estão habituados. No ano passado saiu o Mike Sargent, estava doentito, mas não meti ninguém novo. Estamos juntos há muitos anos, já tocamos juntos há muitos anos. O mais antigo é o João Paulo Pereira e depois tenho o meu sobrinho, o Gonçalo Tavares, que é percussionista e também canta. É com ele que tenho mais contacto fora dos concertos, até porque trabalhamos juntos em estúdio, exaustivamente. Eu gravo inicialmente no meu estúdio analógico e depois passamos para o estúdio digital dele para os aperfeiçoamentos. Continuo a trabalhar muito em analógico, sinto que o som fica muito mais denso, mais quente, mais humanizado. Depois os aperfeiçoamentos, isso sim, são feitos a nível digital. Nesse aspeto o digital permite tudo – até pôr a porteira a gravar um disco.
Na sua opinião é isso que permite que muitas pessoas – nacionais e internacionais – andem a gravar discos?
Isso já é um comentário seu. [risos] Mas se calhar eu não desminto…
Há pouco falou de como, quando cantava numa arena, não estava propriamente a pensar que ali se tinha toureado. Mas ao mesmo tempo nunca escondeu que é um aficionado.
Eu não gosto é do touro de morte, acho horrível. Mas gosto das touradas portuguesas. A única coisa nas touradas são as bandarilhas, mas no final, se o touro for muito bom, tiram-se as bandarilhas e fica para pai. E já há países em que o touro leva uma proteção no dorso e as bandarilhas não picam, são com ventosas. As touradas portuguesas são bonitas, os cavaleiros aparecem com cavalos lindíssimos e a forma como dão a volta ao touro é arte pura. Depois os forcados são extremamente corajosos, eu já tive um touro a avançar para mim e é como ver uma locomotiva na nossa direção. Dantes eles iam para as arenas um bocado bêbados, mas hoje em dia não é nada assim. É lindíssimo e muito corajoso, qualquer loura sueca que venha ver os forcados apaixona-se logo. Em Espanha não é nada assim, é um horror, cheio de sangue e tripas, e eles aplaudem aquilo tudo. As praças lá estão cheias e as nossas estão semivazias. Mas acho que quem gosta mesmo de tourada portuguesa não pode gostar da espanhola, e tem de se marcar a diferença entre as duas. Erva também não é a mesma coisa que heroína. Ou estes ácidos medonhos que agora aparecem. O mundo da droga está minado, especialmente pela cocaína. Os jovens deviam ser instruídos em relação a tudo isto.
Por vezes gosta de assumir esse papel de conselheiro para com os mais jovens que o rodeiam?
Sim. Acho que eles hoje bebem imenso álcool.
Não me vai dizer que, nessas idades, não bebia também.
Nunca gostei de álcool. Gosto de vinho verde e aguardente de medronheiro. Mas ambos me fazem um mal terrível.
Nem nos tempos áureos do Quarteto 1111 viveu uma fase de excessos?
Não. No limite sou capaz de beber um copo de vinho à mesa. Se beber três copos fico bêbedo, porque não estou habituado. Mas devo dizer que, quando ficava bêbedo ficava divertidíssimo, só dizia disparates. Um chorrilho de disparates. Mas apesar de não beber, agora, juntamente com o meu sobrinho, vou fazer um vinho. Vou plantar três hectares de uva para juntar aos oito que a minha irmã já tem.
Nunca se afasta desse seu lado de homem do campo? Por exemplo, vir a Lisboa é um suplício para si?
Não, adoro! Venho ver concertos, filmes… Sou um apaixonado por cinema. Sempre que venho a Lisboa vou ao cinema, mas a 25km da quinta tenho o shopping de Aveiro e é lá que mais vou ao cinema. Ou a Coimbra. Não vivo em modo ermita e a Gabriela, como jornalista e pintora, também precisa de sair e ver coisas. E é na cidade que componho, o que me faz escrever canções é o stress, não é a tranquilidade. No campo sou contemplativo, não tenho ideias. [pega no telemóvel para mostrar uma imagem premiada pela “National Geographic” de dois louva-a-deus e revela que a imagem fará parte do grafismo do seu próximo álbum, “Clube dos Corações Solitários do Capitão Cid”]
Continua a pensar muito nesse lado gráfico dos seus trabalhos?
Completamente. Ainda agora, o álbum que tenho em Espanha tem um grafismo lindo.
E como é que o mercado espanhol o está a receber?
É um mercado onde investi tudo o que tinha… Fui gravar a voz a Madrid, com um produtor espanhol, para me corrigir o castelhano [começa a cantar um medley de alguns dos seus sucessos, mas em castelhano] Eles ficaram surpreendidos com a minha capacidade vocal e inclusivamente compararam-me a um homem que eu adoro, o Joaquin Sabina. Sinto que o mercado lá está a abrir-se. Eu gostava. Tenho uma irmã dez anos mais velha que sempre me disse que eu cantava muito bem em português mas ainda melhor em espanhol. Percebi que podia ter fãs em Espanha quando fui fazer a abertura do Julio Iglesias no então Pavilhão Atlântico e o cantor da noite fui eu. Só cantei quatro ou cinco canções, eu e o meu piano, e deitei a sala abaixo. Depois chegou o Julio Iglesias, muito atrapalhado para subir as escadas para o palco, com seis andaluzas que podiam ser netas dele, e cantou em playback total que toda a gente percebeu. Ele não foi nada simpático comigo, mas eu mesmo assim agradeci a oportunidade e no fim até lhe dei um presente, uma belíssima garrafa de vinho do porto Burmester 1950. Mas arrependi-me porque ele pôs aquilo para o lado. Percebi aí que ele não encaixou que eu tivesse sido tão bem sucedido, foi uma espécie de Benfica-5 – Madrid-0. Curiosamente, em 1974, fui contactado para dar as minhas músicas ao Julio Iglesias e ficar a escrever para ele, mas não quis ficar só a trabalhar para ele em exclusivo. Se tivesse dito que sim estava milionário. Mas sem offshores.
Entretanto, cá em Portugal, pelo que disse, está a preparar o próximo álbum, o tal “Clube dos Corações Solitários do Capitão Cid”.
É um nome que, pessoas sem sentido de humor de uma editora anterior, recusaram imediatamente. Acho o nome bestial. É um álbum mais de canções do que foi o “Menino Prodígio”, que foi um álbum de rock de intervenção, de objeção de consciência, muito bem cantado e muito bem tocado. A propósito da faixa “Menino Prodígio” recebi um email dos Genesis a perguntar quem era a voz e quem era o guitarrista. Mas este próximo álbum será mais de canções, a primeira até já chegou à rádio, “João Gilberto e Astor Piazzola”. E agora vem aí outro single, “Como Uma Cigarra”. Vou lançá-lo em janeiro ou fevereiro. O grafismo da capa terá muito a ver com o “Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band”. Vou vestir-me de enófilo do Dão e terei a minha cadela velhinha ao lado. E depois, no fundo da imagem, vou ter os meus amigos da rádio e da televisão misturados com figuras como a Marilyn Monroe, os Beatles…
Esse seu lado provocador é o mesmo lado que o levou a aparecer nu numa revista, tapado apenas por um quadro com um vinil.
Eu estava despido de preconceitos quando fiz aquela foto, mas sobretudo estava a protestar contras as playlists das rádios. Playlists que são controladas por estrangeiros, que proíbem o radialista de passar aquilo de que realmente gosta, playlists que por vezes estragam canções muito bonitas pois tornam-nas muito repetitivas. As playlists não são criativas e saturam o público. Nessa altura senti que estava irradiado de todas as playlists e portanto resolvi provocar ainda mais. A minha música merece passar em qualquer rádio do planeta, quanto mais na comercial ou na RFM. Eu tenho um álbum entre os cinco melhores álbuns do mundo! O meu “Menino Prodígio” não é só, segundo a Sociedade Portuguesa de Autores, o melhor álbum de 2015, mas se calhar é o melhor álbum de rock mundial de 2015. Sim, porque eu ouvi tudo o que saiu e não vi aquele o som nem aquela atitude em mais nada. Estou a defender a minha dama, mas é o que penso.
Então porque acha que não faz parte dessas playlists?
Por causa do meu bilhete de identidade, que podia ser avozinho deles. E a minha estética é muito dos anos 80. E isso passou, como o rock passou – mas agora está a voltar. Mas eu não vou desistir da minha ideia. Tenho um som e uma forma de estar na música e não vou começar a fazer coisas de que não gosto. Não digo isto com maldade, não estou a contestar as coisas, estou a constatar. Sou com certeza o cantor mais solidário deste país, de longe. Mais solidário que eu só o Ronaldo. Faço solidariedade todos os domingos do ano, estou onde sou preciso, e isso dá-me uma forma de estar na vida que me faz rir e não ter maldade. No 10 de junho, quando vejo aqueles senhores e aquelas senhoras a serem condecorados, sei que eles não colaboraram humanamente e civicamente como eu colaborei. Tenho a certeza. E isso faz-me rir por dentro. Ainda agora nesta tournée pelas arenas, deixo sempre um donativo em todas as cidades por onde passo
Acha que já devia ter sido condecorado pelo Estado português?
Isso é você que está a dizer. Mas alguns deles até se calhar têm offshores. E eu não tenho. Porque é que não hei de ser condecorado?
Esse seu lado provocador pode, por vezes, afastá-lo dessas situações.
Uma pessoa sem sentido de humor não tem cérebro. Eu rio-me muito de mim próprio e isso dá-me direito a ter sentido de humor. Sou cáustico. Mas normalmente só sou apanhado seis anos depois de dizer as coisas [diz em referência à recente polémica em torno de um entrevista, datada de 2010, na qual, entre outras coisas, disse que os transmontanos eram “medonhos e desdentados”]. Pessoas que não perdoam seis anos depois é porque não têm o cérebro todo. Se me quisessem atacar, tinham atacado na época. Mas depois não há problema nenhum que o Alberto João Jardim chame filhos da pu… aos continentais ou que a Maitê Proença diga que somos todos uns imbecis ou que há seis anos tenham cortado aos transmontanos o túnel do Marão e que políticos transmontanos venham para Lisboa dar um exemplo terrível de cidadania mas que depois recebam palmadinhas nas costas no regresso a Trás-os-Montes. Sim, eu errei, não devia ter dito o que disse. Mas foi há seis anos. O que eu critiquei, sobretudo, foram as camionetas que vinham a Lisboa ouvir certo tipo de música quando depois essas pessoas não apoiavam o que lá tinham: A Dulce Pontes vive em Trás-os-Montes e não a ouvem, a Né Ladeiras idem, o Pedro Caldeira Cabral idem, o Paulo Bragança, que é genial, ninguém o ouve. Os Pauliteiros de Miranda só aparecem uma vez por ano na televisão portuguesa, mas deviam aparecer todas as semanas. Eu disse o que disse, não para atacar os transmontanos, mas esta situação.
Chegou efetivamente a ser ameaçado de morte?
Com certeza. Com as redes sociais as pessoas acham que podem dizer tudo. E eu tenho medo. Não posso ir cantar a Trás-os-Montes porque disseram que me matavam e tenho medo. Mas em que país estamos? Só falta fazerem uma fogueira e queimarem-me no meio de uma praça. Há três anos estive em Bragança a fazer um concerto para 30 mil pessoas e como choveu, em vez de me vir embora, esperei dois dias e voltei a cantar. E ainda paguei a viagem para o Paulo Bragança vir cantar à terra dele, pois nunca o tinha feito. As pessoas só agora é que perderam o sentido de humor em relação a mim. Porque será? Porque estou numa fase fantástica da minha carreira, tenho uma tournée, estou em Espanha e vou à televisão cantar sempre em direto.
Nunca pensa, perante situações como esta, que talvez devesse deixar determinado tipo de piadas para quando está com amigos?
Mas eu estava num programa de humor! E porque não se atiraram a mim há seis anos? Tenho de assumir as consequências, mesmo que seja seis anos mais tarde, mas também não vou deixar que me queimem numa fogueira. Podem dizer que não gostam de me ouvir cantar ou que não gostam de mim porque sou benfiquista, tudo bem. Mas sem palavrões nem ameaças.
Qual foi a pior critica que já ouviu?
São coisas mais antigas, do “Diário de Lisboa” e do Mário Castrim. Uma vez até fui lá para lhe bater. A Tonicha tinha gravado umas músicas minhas e ele disse que a minha música tinha hormonas femininas. Se fosse agora não teria a mesma atitude porque todos temos hormonas femininas, mas na altura achei que aquilo era um insulto e fui lá para lhe bater. Só que cheguei lá e ele era um homúnculo, manco e pensei que não o podia matar. Mas ainda hoje há jornais que não vão à bola comigo, e vão à bola com cantores decrépitos que não têm uma obra como a minha. No ano passado fiz 50 concertos em Portugal, este ano já vou em mais de 30. Sou um cantor de concertos, canto em palco como se fosse morrer no dia a seguir. E isto é uma coisa que muitos colegas meus não têm. Não admito um playback. O cantor ao vivo que eu sou, de nível mundial, irrita muita gente que pensava que eu já era.
Dizer assim, de si, que é um cantor de nível mundial irrita muita gente seguramente.
Mas sou. Alguém que me conteste! Eu canto o “Summertime” melhor que o Michael Bublé. Eu e o Paulo de Carvalho! Gostava de ver a carreira que o Elton John teria se tivesse nascido na minha terra.
Por vezes pensa que gostaria de ter nascido noutro país?
Não, não. Só que é inegável que em Portugal é mais difícil as coisas avançarem. O meu álbum “Dez Mil Anos Depois Entre Vénus e Marte” estoirou lá fora… Se fores ao site da Sputnik Music, está nomeado como um dos cinco melhores álbuns de rock mundiais. E por acaso até é. É um álbum conceptual e perfeito. Extraordinariamente bem cantado e bem tocado. Lá fora é um álbum de culto e nem acreditavam que tinha sido feito em Portugal. Mas aqui é um álbum que passou despercebido. Só que vai voltar agora numa edição de luxo.
Tem uma longa carreira mas nos últimos anos ganhou fãs dentro de uma camada mais jovem da população, muitas vezes pessoas que nem sequer eram nascidas quando lançou os seus maiores sucessos. O que acha que levou esta camada jovem a descobrir o seu trabalho?
Sou um cantor ao vivo e as novas gerações são inteligentes e percebem que estão a ouvir um cantor ao nível de outros internacionais, só que eu estou aqui ao pé deles e podem chamar-me Tio Zé. A minha música é feita para pessoas inteligentes, não é feita para preconceituosos nem invejosos. Peço imensa desculpa, mas é o que é. A minha obra está muito à frente da sua época e as novas gerações percebem isso porque são inteligentes.
Mas alguns desses jovens adultos cresceram a ouvir falar de si como o cantor da peruca e dos óculos para esconder o olho de vidro e a brincarem com isso. Incomoda-o?
O cabelo é meu. Completamente meu. Comprei-o, é meu. Os óculos usava porque sou completamente cego da vista esquerda. Ultimamente uso menos porque tenho uma prótese nova, muito bem feita. Foram cinco americanos bêbedos que vieram contra mim – vínhamos de um ensaio do Quarteto 1111 – na marginal, a minha vista ficou aqui [e aponta para meio da cara]. Mas sim, as pessoas fazem de mim um boneco, só que eu sempre lidei bem com isso. Se gozarem comigo eu digo que vou ali fazer xixi. E não volto.
Lembra-se da primeira vez que sentiu que a sua vida passaria pela música?
Lembro-me perfeitamente. Tinha 12 anos e estudava no Colégio Camões, em Coimbra. Nos intervalos juntávamo-nos todos para tocarmos piano, cantar, tocávamos o que houvesse à mão. Um dia, um grupo em Coimbra desafiou-me para ir cantar com eles. Disse que não podia porque os meus pais não deixavam e eles é que me disseram que eu dormia no rés-do-chão no colégio e podia fugir pela janela. E assim foi.
A minha carreira começa a saltar a janela. Tocávamos o que se ouvia na época, como Elvis Presley.
E percebeu logo que aquilo mexia consigo?
Não, porque não me deixavam cantar, diziam que eu tinha voz de menina. Mas um dia o vocalista da banda disse que, como cantava e também tocava bateria, merecia dois cachets. Os outros recusaram e ele não foi tocar ao Carnaval do Hotel da Urgeiriça. Eu liguei a um primo que tocava bateria para vir connosco e eu toquei piano e cantei. Na primeira noite saí em ombros da sala e nas outras duas noites também. Quando regressámos a Coimbra o resto da banda disse ao vocalista que ele estava fora e que eu passava a ser o vocalista.
E os seus pais?
Proibiram-me. Mas eu menti: disse que todo o dinheiro que ganhávamos era para dar à Conferência de São Vicente de Paula. E eles deixaram.
E alguma vez deu esse dinheiro à Conferência?
Só mais tarde. Nessa altura era tudo para a borga.
Como surge o Quarteto 1111 na sua vida?
Vim para Lisboa estudar educação física e um colega que me ouviu perguntou-me se eu não queria ir para a banda do irmão. Fui e nunca mais me deixaram sair. Curiosamente, quando eu entrei, saiu um guitarrista que acabou por ir viver para o Algarve e ter uma criança com uma senhora inglesa. Essa criança é o Jamiroquai.
O que acha que marcou a diferença para o Quarteto 1111?
Tocávamos covers em bares, para sobrevivermos. Mas entretanto percebemos que, custasse o que custasse, tínhamos de fazer um álbum original. Por isso passámos noites e noites numa garagem na Alapraia. Lembro-me de lhes levar a “Lenda de Dom Sebastião” e todos adoraram. Curiosamente achávamos que “Os Faunos” é que seria o grande sucesso. O nosso primeiro álbum foi engavetado pela censura ao fim de uma semana de estar nas bancas porque era um álbum conceptual sobre a emigraçãoe o colonialismo.
Sentiu-se muitas vezes perseguido pelas músicas que criava?
Estive para ser preso, sobretudo quando fui a Angola. Só não fui porque na altura a censura centrava-se mais nos cantores próximos do Partido Comunista. E todos nós, no Quarteto, éramos monárquicos ou neo-monárquicos. Ainda sou. Gosto dos sistemas dos países do norte da Europa. O sentido de humor deles é muito superior. E sou representante direto dos títulos de Visconde dos Lagos e Barão do Cruzeiro. Mas nunca fiz uso deles.
Nessa altura tinham as fãs sempre atrás de vocês?
Mais quando entrou o Tozé Brito, que era um giraço de cabelo pelos ombros. Fartavam-se de gritar. Mas nós éramos um grupo de músicos pela música. Isso era o mais importante.
O final do Quarteto 1111 foi agridoce?
Não, foi pacífico. Eu paralelamente já tinha a minha carreira a solo e ninguém se agredia.
Vai todos os dias para o seu estúdio?
Todos. A minha vida é escrever canções, cantá-las e gravá-las. Esse é o meu projeto de vida. E tenho a sorte de Deus me manter a voz. Só deixarei os palcos quando vir que não tenho voz.