Eles – a Ana, o Jorge, a Maria, o Tomás e a Matilde – são uma família normal. Por esta hora estará o leitor a pensar: se são uma família normal, o que fazem nestas páginas? É exatamente por isso, pela sua normalidade na forma como lidam com as circunstâncias que a vida lhes trouxe. São normais, mas especiais. Vamos por partes – já que a história começa há 16 anos, quando Ana e Jorge foram pais pela primeira vez.
Em dezembro de 1999 nasceu aMaria. Tinha 2.100 gramas, uma deficiência única no mundo e um prognóstico de vida de 48 horas. Ana tinha 24 anos quando engravidou. Era jovem mas decidida, tinha um bom emprego.“Sempre quis ser mãe cedo. Os meus pais tiveram filhos tarde e sempre me aborreceu quando me iam buscar à escola e os colegas me perguntavam se aqueles senhores eram meus avós”.
Às 27 semanas de gravidez, em setembro do último ano do milénio, a bebé que Ana carregava parou de crescer ao mesmo tempo que, em sentido diametralmente oposto, cresceram as dúvidas dos médicos. E cresceu o medo dos pais. Medo fundado, confirmado pelo primeiro diagnóstico. A bebé tinha uma deficiência genética – ou cromossomopatia – única no mundo, tão única que nem tinha sequer nome. No resultado da amniocentese, Ana e Jorge ficaram a saber que Maria tinha uma translocação X13. Um olhar médico mais profundo detetou um coração diferente de todos os outros e uma sentença – a bebé apenas conseguiria sobreviver 48 horas após o nascimento.
Nas semanas que passaram entre o diagnóstico e o nascimento, Ana ouviu – e sentiu – tudo. Como conta no livro que publicou recentemente (“A Mãe da Maria”, ed. A Esfera dos Livros), teve quem lhe dissesse que tinha “um monstro na barriga”. E quem, julgando ser bem intencionado, usasse outra abordagem. “Pensa que o que tens na barriga é como um tumor que, no dia em que nascer, passam 48 horas e ficas boa da operação”. Hoje, quem conhece a Maria, não pode sentir outra coisa que não asco por estes conselhos.
Quando Maria nasceu, na Maternidade Dr. Alfredo da Costa, Ana não a viu. Nem ouviu qualquer barulho que não uma música de Elton John, posta a tocar alto, enquanto os médicos a cosiam. Foi colocada em recuperação na sala onde descansam as dores do corpo e do peito as mães que pariram bebés sem vida. E foi aconselhada a não ver a filha. “Disseram-me que criar laços seria pior”, conta. Passadas umas horas, uma enfermeira deixa-lhe uma fotografia da bebé e Ana soube que tinha de ver. Arrastou-se pelos corredores até à incubadora, uma viagem que descreve como “a mais dura” da sua vida. Chegada ao local onde Maria lutava para ficar neste mundo, entubada, tão pequenina, ouviu a pergunta, vinda de uma enfermeira, que se tornaria tão comum no futuro.”Foi a primeira vez que me perguntaram se era eu a mãe da Maria”.
Contrariando todos os diagnósticos iniciais, a Maria foi para casa, para logo voltar ao hospital, périplo que estava apenas a começar. Os meses seguintes foram um desafio. Operações, aprender a alimentar um bebé tão especial, hospitais. Cada grama celebrado como uma vitória. Voltar a casa. Retornar a correr para o hospital. Foram meses de luta pela sobrevivência, com os médicos a recusarem previsões porque eles próprios se sentiam perdidos. Aos sete meses, a Maria chegou definitivamente a casa – e os pais sentiram que podiam, finalmente, começar uma vida em família. Hoje, quando Ana fala destes primeiros tempos, reconhece que a catarse demorou a ser feita. “Só agora, quando escrevi o livro, é que tive provavelmente tempo e senti necessidade de analisar os meus sentimentos. Reviver algumas coisas foi muito complicado, porque naquela altura tudo acontecia tão rápido que só tínhamos tempo de agir”.
E as ações continuaram a ter que ser tomadas em catadupa – era uma questão de sobrevivência. À medida que o tempo foi passando, a família sente cada vez mais que Maria nasceu para contrariar as estatísticas. Que é uma exceção. Com tudo de bom e de mau que este estatuto acarreta. E as estatísticas – malogradas, impossíveis – escolheram-na para carregar outro fardo.
“Estávamos em casa há pouco tempo quando descobri uma massa no olho da Maria”. Era um tumor no olho, que acabou por resultar na remoção do mesmo em Lausanne, na Suíça. Era agosto de 2000 e a bebé tinha oito meses. Após a operação, entrou em paragem cardíaca. Mais cuidados intensivos, muito choro. Um drama que não tinha fim à vista e uma família à beira do colapso – de nervos, de dúvidas. “A minha filha tinha sobrevivido mas vivia apenas com sofrimento. Quando voltou para casa ainda teve de fazer quimio!”. As dúvidas se aquele seria o dom da vida eram muitas na cabeça desta mãe. Num dos momentos de fraqueza, à cabeceira de uma criança com pouco mais de um ano entubada e em sofrimento, Ana recorda mais um daqueles momentos de cinema da vida real. “Eu estava de rastos e a Maria agarrou o meu dedo com força. Era ela mesmo naquela situação que me estava a dar força”. Enquanto Ana se recorda do episódio, não conseguimos evitar que uma imagem se forme na nossa cabeça. Uma imagem que está no teto da capela Sistina, pintada por Miguel Ângelo – a imagem do toque da vida entre Deus e Adão.
“A minha cunhada Mónica disse-me que tinha duas escolhas: ou ficava com pena de mim e vivia o resto da vida a pensar que era uma coitadinha, ou dava a volta por cima”. Nem pestanejou – escolheu ser feliz.
Podemos escolher ser felizes? Ana acha que sim. E o casal resolveu continuar a sua vida, relativizando os sobressaltos. E aí veio o Tomás, que nasceu quando a irmã mais velha – que hoje lhe cabe no colo e parece a mais nova dos três – terminou as sessões de quimioterapia e voltou a casa. “Uma criança deficiente não tem que ser, nem é, uma criança doente. Hoje a Maria é saudável, e é uma sorte e um privilégio poder afirmar isto”.
Os irmãos cresceram como “gémeos falsos”, diz Ana a rir. “Têm uma relação única”. Matilde veio completar o trio – é cinco anos mais nova que a Maria e três que o Tomás.
Tanto o Tomás como a Matilde, agora adolescentes, escrevem alguns textos no blogue da família “A mãe da Maria”, onde relatam as experiências do dia a dia e pretendem demonstrar que a inclusão é possível.
“Mimi, abre os braços”, diz Tomás com um tom de voz cómico enquanto a irmã posa para as fotografias, no dia em que B.I. os conheceu. Maria obedece, sorridente. Gosta de tirar fotografias. “Mas também ralham e brigam uns com os outros”, garante a mãe.
A inclusão
As primeiras montanhas estavam escaladas. Maria tinha sobrevivido. E, fora dos hospitais, vivia. Com uma deficiência profunda e completamente dependente, quando chegou à idade escolar os pais conheceram um novo desafio. Aos três anos, foi para a creche onde não pôde permanecer devido aos sistema imunitário débil. Mais tarde, receberam a ajuda da Fundação Liga, que os ajudou a fazer a ponte com o jardim de infância de Telheiras, uma instituição onde, segundo Ana, “se faz inclusão a sério”. Tomás foi para a mesma sala. “Era hilariante ver um miúdo de três anos dizer à educadora como é que ela devia ou não reagir em determinadas situações”, conta Ana no livro.
Maria esteve nesta escola até aos oito anos. “A nossa filha não estava preparada para a escola primária”. E pela lei, teria de ir para uma sala de multideficiência. “Fiquei de cabeça perdida”, diz Ana. “A Maria, assim como as restantes crianças com deficiência, também aprendem por imitação. Se estão todos confinados no mesmo espaço sem interagir com as outras crianças a sua evolução não será a mesma. Senti uma grande revolta porque percebi que apesar de existirem salas de multideficiência não há inclusão nenhuma. Os outros miúdos não veem os deficientes, não há interação alguma. Não podia aceitar isto”.
Daí a começarem à procura de colégios que aceitassem Maria na creche foi um passo. “Posso dizer que bati à porta de todos os colégios de Lisboa. Com a inscrição do Tomás e da Matilde estava tudo bem, com a da Maria havia sempre problemas. Uma coisa impressionante. Como se todas as instituições tivessem medo de a receber. Uma vergonha”.
Maria e os irmãos estão hoje em dia todos no mesmo colégio. “Por uma questão logística é muito mais fácil”. A chegada ao colégio onde agora estudam não foi, no entanto, livre de drama. Mas aconteceu, e atualmente Maria está perfeitamente integrada.
Se na escola o trabalho está feito, na sociedade é outra coisa. Ana começou a sentir uma realidade que a cada dia a incomodava cada vez mais. “Os portugueses não sabem lidar com pessoas com deficiência e não é por mal, é mesmo por desconhecimento”. E aí começou nova incursão, desta vez não apenas pelos direitos da Maria mas uma luta mais abrangente: a da inclusão. Nesta senda nasceu o blogue e o livro já mencionados e que carregam o nome que lhe deram naquele dezembro de 99, na Alfredo da Costa: “A mãe da Maria”.
A dúvida de que Ana fala sobre como devemos tratar uma pessoa com deficiência certamente assola muitos de nós – em Portugal, 6% da população é deficiente. “Eu própria não conhecia ninguém deficiente antes de ter a Maria”, revela.
A exposição é sempre agridoce – se permite passar uma mensagem, também abre espaço para comentários depreciativos. “Só me disseram uma vez que só conseguíamos ter a Maria nestes colégios porque éramos ricos. É verdade que gastamos muito dinheiro com ela (só em fraldas!) mas se o fazemos é porque o ganhamos. Aí tenho a consciência completamente tranquila – tanto eu como o Jorge somos incansáveis na nossa vida profissional”. E recorda outro comentário que a entristeceu. “Numa entrevista, a jornalista induziu a ideia de que nós até gostámos de ter uma filha deficiente. Nunca se ouviu tamanho disparate. E julgo que este comentário surgiu apenas porque escolhemos ser felizes e encararmos a deficiência da Maria com normalidade”.
De resto, todos os comentários que tem recebido no blogue são positivos. “Temos muitos leitores que têm filhos ou familiares com deficiência mas também pessoas que não conhecem esta realidade e vão percebendo o que é através do nosso testemunho”, conta. Este é, aliás, o objetivo – espreitar pelas portas da casa desta família é também uma maneira de desmistificar a deficiência e perceber a inclusão.
Nascer para abraçar?
“A Maria tem uma inteligência emocional única. Dos meus três filhos é a que mais rápido se apercebe quando chego triste a casa”, diz Ana. Uma inteligência emocional que revela através do instrumento que mais gosta: o abraço.
Aqui mudo, num exercício de exceção novo e desconfortável para mim, o discurso para a primeira pessoa. Apenas porque temo que, se não o fizer, se percam as sensações que vou tentar transmitir.
A Maria nunca me tinha visto. Estava sentada no seu carrinho, com um laçarote no cabelo que já lhe tinha visto em tantas fotos, quando cheguei à porta do Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa. Sorri-lhe e atirou-me imediatamente um olá. Já dentro do espaço, trepou-me literalmente pelo corpo acima. Queria colo e queria dar um abraço.
“Pronto, também já foi marcada”, comenta Ana. “Ela faz sempre isto”, corrobora Tomás. Dar um abraço a um desconhecido, ainda que a uma criança, pode parecer desconfortável a início. Para mim não foi e, mesmo que tivesse sido, a Maria rapidamente resolveria o assunto. Porque ela não larga até nos envolver por completo, até aquela sensação de relaxe bom de estarmos tão tranquilos, ainda que fisicamente tão próximos, de outro ser.
A Maria abraça-nos como se fôssemos as melhores pessoas do mundo. Ou como se fosse ficar tudo bem. Imagino que as sensações de quem recebe este bálsamo sejam diferentes de pessoa para pessoa, de momento para momento. No meu caso, num dia de muito cansaço, o abraço da Maria foi um porto de abrigo e de descanso. Foi um boost de energia.
Às vezes, esquecemo-nos do poder um abraço. Um abraço inteiro, sentido, apazigua-nos com nós próprios e, por arrasto, com quem nos rodeia. Voltei para a redação com vontade de transmitir aos colegas esta sensação, mas rapidamente percebi que as insípidas palavras que estava a usar eram insuficientes para descrever a experiência – espero que me tenha saído um bocadinho melhor na escrita. Poderá alguém ter nascido para tornar este mundo um bocadinho melhor com um abraço? Eu, que já me deixei abraçar, abracei e fui abraçada pela Maria, acredito que sim.