Documento imaginário dirigido ao filósofo Francis Bacon (1560-1626), “A Carta de Lord Chandos” (1902) tornou-se um dos momentos fundadores da modernidade literária. Nela, Hugo de Hoffmannsthal imagina-se na pele de Philipp, Lorde Chandos, contemporâneo de Shakespeare e discípulo de Bacon que a 22 de Agosto de 1603, aos 26 anos, teria escrito a Francis Bacon desculpando-se por ter renunciado à atividade literária.
A Carta traduz uma crise, uma ferida sem cicatrização possível. Uma crise da linguagem, uma crise de confiança na linguagem, da sua possibilidade de representar o mundo. Uma palavra não diz o que parece estar a dizer, logo pode tornar-se antes de mais numa ferramenta de poder. A linguagem, não remetendo para nada exterior a si, aprofunda o vazio.
No mundo e na unidade do eu estilhaçados, nenhum símbolo apreende ou coagula a verdade. Nem a do instante pressentido, breve. Quanto maior for a desmaterialização, maior a vacuidade. Isto é a síntese da Carta, se bem que o autor não tenha deixado de escrever, como garantiu que deixava…
Hugo von Hofmannsthal (1874-1929) foi poeta, dramaturgo, ficcionista e ensaísta. A origem aristocrática, no seio de uma família ligada à banca anglo-austríaca, permitir-lhe-ia uma educação aprimoradíssima. Talhou-se em Viena, no contexto do desmoronamento do Império Austro-húngaro. Universo singular, fervilhante, único, profético.
Como poeta lírico, Hofmannsthal publica muito jovem o seu primeiro livro. Introduz-se no círculo os “Modernos”, jovens vienenses à volta do dramaturgo Hermann Bahr. Publica, por exemplo, na célebre revista “Blätter für Kunst” (Folhas para a Arte), em que colabora também Stefan George, outro esteta e um frequentador das Terças-Feiras de Mallarmé. Hofmannsthal é desde logo aplaudido. A sua tonalidade é deliberadamente simbolista, algo decadentista: um lirismo desenhado por imagens voluptuosas, diáfana musicalidade. Da alma ou da experiência súbita em verso. Uma linguagem dentro da linguagem – linguajar que recusa a língua comum e o realismo. O nosso autor não é todavia indiferente ao exterior à linguagem, tanto como sujeito como ser de ação.
Vencida em 1866, na guerra Austro-prussiana, por Bismark, a Áustria viu-se obrigada a aceitar a separação dos estados alemães, a assistir à deflagração da ideia de identidade e império a par de uma crise financeira em 1873.
Viena, brilhante capital do império dos Habsburgos, não podia deixar de se comparar a Berlim, culturalmente ainda uma criança. E de sentir o seu declínio, de refletir sobre ele (Musil), mas de criar esplendorosamente em vários domínios a partir dele. O entusiasmo e a catástrofe reunidos. Hermann Broch chama-lhe “o feliz apocalipse”.
Anote-se que este virar de século austríaco viu surgir figuras como Freud, que publica as suas primeiras obras; teóricos e filósofos da linguagem como Wittgenstein, Karl Krauss; o expressionismo, e muito muito mais.
Hofmannsthal foi amigo de escritores como Schnitzler, Hermann Bahr, Stefan George (o destinatário não expresso da carta) e Rilke. Manteve correspondência com as mais variadas personalidades europeias; até com o ainda jovem Walter Benjamin. Colaborador de Strauss como libretista, foi autor de textos inigualáveis de ópera como, entre outros, o de “O Cavaleiro da Rosa”. Aliás, com Max Reinhart (emigrado para os EUA dada a sua condição de judeu), em 1920, fundaria o Festival de Salzburgo.
“A Carta de Lorde Chandos” já tinha conhecido entre nós uma edição, esgotadíssima, da Hiena em 1990. Do mesmo autor, a Relógio D’Água, traduzira Andréas, romance enigmático, iniciático, entranhado de simbolismo e mistério. Um livro inacabado, porventura inacabável.
Na nova edição a Carta surge-nos com uma introdução de Hermann Broch, judeu mais tarde exilado e membro da inteligentsia vienense. O texto de Broch é um capítulo extraído de “Hofmannsthal e o seu Tempo”, no qual se traça com precisão o que está em jogo na declaração de abandono da poesia lírica por parte de Philipp, Lorde Chandos.
Antes da perceção do abismo, da não comunicação entre “uma idealidade supraterrena” e a “materialidade do poder corporal”, tudo quanto existia se lhe apresentava como uma grande unidade: “ o mundo espiritual e o mundo material pareciam não constituir antítese”.
Em tudo o eu coincidia, cada parte seria uma alegoria do todo indissolúvel, “e cada criatura uma chave das outras, e sentia-me a ponto de as colher pela corola, uma após outra, para que cada uma me revelasse todas as outras de que ela conhece o segredo”.
Porém o ser enquanto eu e o ser enquanto mundo separaram-se. O autor de “A Carta de Lorde Chandos” compara-se a Crasso, o orador que sobreavaliou as suas capacidades.
Em 1901, Hofmannsthal deixa Viena e instala-se a alguns quilómetros, em Rodaun, numa propriedade agrícola. Retira-se, retrai-se, emudece. E é isto que Lorde Chandos tenta, tateando, traduzir a Francis Bacon.
Como traduzir em palavras a renegação das palavras? De que mudez falar se se emudeceu?
Convém não deixar de acentuar o quanto na Mitteleuropa a discussão em torno da filosofia da linguagem e da literatura eram nucleares.
O autor da carta passa a percorrer as terras, a deter-se, ao acaso, nas coisas que irrompem, animadas ou inanimadas. As que são o que são: o tronco de uma nogueira, a sua sombra, um regador esquecido pelo jardineiro, um escaravelho, uma pedra coberta de musgo. A tudo se conecta e se abandona. Em silêncio, deslumbrado com a maravilha das coisas: “e o todo é um pensar febril, mas um pensar cuja expressão é mais imediata, mais fluida, mais ardente do que as palavras. São turbilhões, mas turbilhões que não parecem, como os das palavras, conduzir ao insondável mas me fazem penetrar em mim mesmo, no mais profundo da paz”.
Texto de Maria da Conceição Caleiro