Dois médicos e um enfermeiro estão em frente ao quadro de ardósia, vazio de letras e de números. Aos seus pés têm oito velhos, estendidos no chão, como podem, num calor cortado apenas pela aragem da ventoinha.
Os três vão-se agachando de quando em vez, medindo tensões, dando medicação e acudindo, de cócoras, aos pedidos de ajuda. Enquanto isso, o nono chega de cadeira de rodas à porta da sala – a 316 da Escola Horácio Bento, no Funchal. «É aqui?», pergunta. É, era o corpo que faltava para o colchão vazio de um dos cantos.
Os incêndios que nos últimos dias assolaram a Madeira não obrigaram apenas ao improviso de abrigos para desalojados em estádios de futebol, em pavilhões ou mesmo no Regimento de Guarnição III. Centenas de doentes internados em hospitais ameaçados pelas chamas e cobertos pelo fumo e cinzas tiveram de ser arredados. Doentes crónicos com doenças incapacitantes, que não andam – alguns não falam – acabaram no chão de uma escola. Só um fino colchão de espuma forrado com uma capa impermeável os separa da tábua corrida.
Pouco passa das 22h de quinta-feira e não se ouve nem um gemido ou fala. Estão ali, lado a lado, uns à frente dos outros. Calados. Muitos sem perceber ao certo o porquê de estarem no chão. Vieram dos cuidados continuados do Hospital Doutor João de Almada e se tudo correr bem, e o calor e os ventos que têm espalhado as fagulhas abrandarem, em breve regressarão a uma cama.
«Para eles mesmo assim é melhor do que para nós. Temos de nos baixar cada vez que é preciso um tratamento, para os tirar ou pôr no colchão. Já viu a responsabilidade que é tirá-los de uma cadeira e colocá-los no chão, nestes colchões, sem deixá-los cair?». As costas de Miguel, um dos auxiliares de ação médica que ali trabalha, estão a dar de si: «Tenho de ter muito cuidado para não sair daqui de rastos também. As camas articuladas dos hospitais fazem-nos muita falta, cada cama daquelas é como se fossem duas pessoas a ajudarem-nos».
Mas as camas não podiam entrar nesta logística de improviso. Cada uma pesa até 150 quilos e seria impossível incluí-las no plano de evacuação de urgência. «O que mais os ameaçava era o fumo e por isso teve de se tirá-los de lá rapidamente», conta outra fonte que prefere não ser identificada, adiantando que, mesmo que o fogo nunca chegasse à unidade de saúde, a existência de garrafas de oxigénio e de outros materiais representava um risco acrescido – poderiam rebentar com o aquecimento.
Não era preciso perguntar nada, estava tudo à vista
A ordem é para ninguém falar de pormenores da evacuação em frente aos repórteres. Nem profissionais nem doentes. O aviso chegou logo à entrada: «Têm ordem para fotografar e ver como as coisas estão a funcionar, mas não poderemos responder a muitas questões», disse a responsável dos cuidados continuados. Não era preciso: a resposta a qualquer questão estava à frente dos olhos, da máquina fotográfica.
Era escusado perguntar se os doentes tinham uma campainha para chamar os médicos ou enfermeiros no caso de se sentirem mal, se tinham as condições básicas para o seu estado de saúde, ou mesmo se sentiam calor sempre que a ventoinha lhes virava costas. Não valia a pena questionar por que nenhum estava ainda a dormir àquela hora, ou porque é que não havia controlo de entradas na porta das traseiras – por onde sem querer entrámos sem qualquer dificuldade ou pergunta. Tudo estava respondido naquela garrafa de soro pendurada não num tripé com rodas comum, mas na ardósia.
São as condições possíveis, numa ilha onde todos tiveram de se desdobrar para chegar a todo o lado.
E não foi só nos cenários de incêndio que se sentia uma solidariedade sem fim, que se via homens e mulheres a salvar desinteressadamente casas de vizinhos – no Funchal, na Calheta, em todo o lado.
Nestes hospitais improvisados também não faltaram voluntários. M.S., aluna de enfermagem, que chegou à escola ao mesmo tempo que o SOL, foi um desses casos. No elevador, até ao 3.º andar, conta que não hesitou quando soube, através de um grupo no Facebook, que eram precisos voluntários para ajudar a tratar os velhos que estavam ali estendidos.
«As pessoas estão muito solidárias, não imagina a quantidade de pessoas que se oferecem para nos vir ajudar, alunos de medicina, de enfermagem que querem participar, que querem vir só para ajudar os outros. Eu nunca tinha visto nada assim», conta a responsável pelo serviço dos cuidados continuados que nos recebeu.
São uma ajuda para os médicos e enfermeiros, mas também para os auxiliares da ação médica que, como Miguel, passam lá a noite.
Este funcionário acha que apesar de todos os problemas, a resposta tem sido positiva: «Eles estão bem dentro do possível, pode não ser muito confortável, mas não se têm queixado, tirando aquela senhora ali».
A ‘senhora ali’ estava no chão de pedra do corredor, era a única que não estava em nenhuma das seis salas de aula do 3.º andar da Escola Horácio Bento. Era a mais faladora e mesmo assim falava pouco. «Então, parabéns», atirou, atenta à conversa entre auxiliares em que uma contava que fazia anos.
Não estava no corredor por falta de espaço, mas porque se sentia melhor. «Dizia que não tinha forma de estar lá dentro e queixava-se de dores nas costas. Não sei se é verdade ou não, então decidimos colocá-la ali com umas almofadas», conta Miguel.
Virados para a parede: o castigo está quase a acabar
Em cadeiras de rodas ou pelo próprio pé, alguns doentes saíam durante a noite dos seus colchões e iam até ao corredor, onde médicos, enfermeiros, voluntários e auxiliares se reuniam em grupinhos. Na mudança de turno das 22h, por exemplo, alguns estavam de olhar perdido, parados de frente para os cacifos.
Buscavam um alívio para as costas, mas também a luz, que no corredor está sempre acesa – nas das salas de aulas só se acendia para a entrada dos médicos.
A nova equipa de médicos sabe que em desespero pode contar com os colegas e os serviços do Hospital Doutor Nélio Fonseca, que fica do outro lado da rua. O cenário de improviso – e à primeira vista próximo do terceiro mundo – foi pensado ao pormenor: «Aqui sempre se pode beneficiar de serviços partilhados, ainda que tenhamos uma equipa em permanência para tomar conta do que se passa», contam os funcionários.
O tormento dos mais velhos, pelo menos o de dormir no chão, está quase a chegar ao fim. Concluída a limpeza do Hospital Doutor João de Almada e afastado o perigo das chamas, vão voltar em breve para as suas caminhas. O Governo Regional da Madeira disse já acreditar que isso deve acontecer – aos poucos – já esteve fim de semana. Aí poderão levantar-se os colchões e voltar a espalhar-se as mesas e as cadeiras das crianças, que agora estão amontoadas numa só sala.