Trazia a harmónica sempre consigo, num bolso interior do casaco. Sempre junto ao coração, que no fundo era o lugar que este instrumento sempre ocupou na vida de Toots Thielemans. Era a sua forma de falar, de se exprimir, de contar o que lhe ia na alma. Não só foi considerado um dos melhores harmonicistas de sempre como foi um pioneiro na utilização deste instrumento no jazz. Dizia-se, por isso, que a sua harmónica era a mais famosa do mundo. Mas o músico era também um exímio guitarrista, além de detentor de um assobio singular.
Toots Thielemans morreu ontem, durante o sono, segundo a sua agente, Veerle Van de Poel, confirmou ao jornal francês “Libération”, um mês depois de ter sido hospitalizado em Bruxelas, na sequência de uma queda, da qual aparentemente recuperava bem. Tinha 94 anos e dado a sua carreira por concluída em 2004, devido a outros problemas de saúde.
Entre as mais variadas reações, destaque para o músico e produtor norte-americano Quincy Jones que, num post na sua página de Facebook, acompanhado por uma fotografia dos dois na qual Thielemans segura, divertido, uma lagosta: “Descansa em paz ‘My Uncle Be-Bop’ Toots Thielemans, um dos maiores músicos dos nossos tempos. Nunca esquecerei os inúmeros álbuns em que trabalhámos juntos… demasiados para os nomear. E sempre que estava a planear regressar ao estúdio de gravação, era a ti que ligava. És inequivocamente o melhor tocador de harmónica que o jazz já viu. Deus te abençoe. Deixas um eterno vazio na minha alma e o concerto de hoje é para ti.”
Jean-Baptiste Frédéric Isidor Thielemans nasceu em 1922, em Bruxelas, na Bélgica, no seio de uma família modesta cujos sonhos para o filho estavam muito longe de uma vida nos palcos. Por isso mesmo chegou a seguir para a universidade, para estudar Matemática. Mas a paixão pela harmónica – que comprou depois de ver um filme onde um homem toca harmónica antes de ser conduzido à cadeira elétrica – trocou-lhe as contas. Em vez de estudar, aprendia a tocar, sobretudo recorrendo ao exemplo de Larry Adler.
Ainda assim, começou a sua carreira como guitarrista – aprendeu a tocar a ouvir os discos de Django Reinhardt – e deu nas vistas pela primeira vez ao acompanhar à guitarra o sexteto do clarinetista Benny Goodman durante uma tournée pelos EUA, em 1947, influenciado pelo desejo de ver de perto o advento do bebop no pós-ii Guerra Mundial. Antes mudou o seu nome para Toots, argumentando que o nome de batismo não possuía swing suficiente, segundo conta o jornal “Le Soir”.
O mesmo jornal escreve agora que “o jazz, na Bélgica, era ele”, pondo de parte qualquer tristeza pelo facto de o músico, em 1951, ter trocado o país onde nasceu pelos Estados Unidos da América, local bem mais propício para os seus sonhos no jazz. O próprio primeiro-ministro belga, Charles Michel, sublinha o peso desta perda: “Perdemos um grande músico, com uma personalidade apaixonante. Os meus pêsames estão com a família e os amigos de Toots Thielemans”, escreveu no Twitter. Já a família real belga – que concedeu ao músico o título de barão em 2001 – refere-se-lhe como “um dos maiores jazzmen”.
Já a viver nos EUA, foi como guitarrista no George Shearing Quintet que Toots Thielemans passou a maior parte da década de 50 e foi aqui que o seu caminho começou a cruzar-se com os maiores nomes do jazz. Em 2008, numa entrevista ao “Público” aquando de uma das últimas passagens por Portugal – onde era grande amigo de Luiz Villas-Boas, considerado o pai do jazz no país –, disse que a melhor recordação que tinha era ter tocado com Charlie Parker. “Não fui eu que lhe liguei a pedir para tocar com ele, foi ele que me chamou. O manager disse-lhe se ele queria aquele miúdo belga da harmónica, e acabei a tocar nos Charlie Parker All Stars, com Miles Davis, Milt Jackson…” E muitos mais. Da lista de parcerias de Toots Thielemans constam, além dos já referidos Charlie Parker e Miles Davis, nomes como Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, Peggy Lee, Quincy Jones, Billy Joel, Edith Piaf, Nick Cave, Pat Metheny, Natalie Cole e Bill Evans.
Apesar do talento e do sucesso que acabou por atingir, nos primeiros anos nos EUA ganhou dinheiro essencialmente graças ao seu assobio. Foi este que lhe valeu o lugar em inúmeros anúncios de rádio e televisão, mas também em genéricos, como é o caso da série juvenil “Rua Sésamo”, e em filmes, como “O Cowboy da Meia-Noite” (1969), realizado por John Schlesinger e vencedor de três óscares – Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Argumento.
Mas no final de 1962, Toots Thielemans compõe “Bluesette”, tema em que à harmónica junta os seus outros dois instrumentos de eleição, a guitarra e o assobio, e que lhe confere fama internacional e o afirma como um músico não apenas de apoio, mas digno de uma carreira a solo. E uma carreira que efetivamente correu mundo, não só pelos inúmeros álbuns que lançou e concertos que deu nos quatro cantos do planeta, mas pela proximidade de que gozou com outros géneros musicais, nomeadamente da bossa nova, que considerava ter tido uma evolução muito semelhante à do jazz e do bebop. Em 1975 gravou “Aquarela do Brasil”, com Elis Regina.
Costumava dizer que a harmónica era “um passatempo”, mas também “uma paixão”. Segundo o saxofonista Nanã Sousa Dias, “Toots foi um músico importantíssimo, principalmente como instrumentista. Era um monstro na harmónica, revolucionou-a como instrumento solista. Não só foi importante no jazz como também na música pop-rock. Foi uma grande referência, toda a gente que toca harmónica é influenciada por ele. Foi muito importante como compositor, tendo temas incluídos no Real Book, que reúne as partituras mais distintas do jazz. Também foi um grande guitarrista e assobiador. Assobiava maravilhosamente e tinha uma capacidade de improviso fora do normal. Não havia ninguém como ele.”