«Que sítio perfeito para um atentado do Daesh: um festival de comédia sem absolutamente nenhum tipo de segurança!». Esta é uma das primeiras frases de The Hate Speech Tour, espetáculo de Andrew Lawrence no Edinburgh Festival Fringe. O controverso comediante britânico, acusado de intolerância pelas suas piadas anti-imigração, diz que seria terrível se tal acontecesse, mas que não ficaria enlutado se um hipotético ataque vitimasse alguns dos comediantes mais famosos do que ele. É uma piada, parte de um espetáculo que não impressionou, mas que resume a singularidade de um evento como o Fringe de Edimburgo.
Humor negro? Sem dúvida. Mas o Fringe não se limita a isso. Aliás, o Fringe não se limita. A 69.ª edição do maior festival de artes do mundo, que termina esta segunda-feira, acolheu mais de 50 mil performances, entre comédia, teatro, musicais, burlesco e atuações de rua. Não há júri de seleção nem censura: todos os artistas do globo podem candidatar-se a atuar lá, já que é um festival de acesso aberto. E é uma plataforma de divulgação artística: foi no Fringe que Rowan Atkinson (‘Mr. Bean’, ‘Blackadder’), Hugh Laurie (‘Dr. House’, ‘Blackadder’ e ‘Fry and Laurie’) e recentemente Trevor Noah, o comediante sul-africano que substituiu Jon Stewart no Daily Show, deram impulso às suas carreiras.
Destino ideal para um humorista em busca de uma overdose criativa, o Fringe é o mais alucinado dos doze festivais que a cidade acolhe, sendo as vendas de bilhetes superadas apenas pelo Mundial de Futebol e pelos Jogos Olímpicos. Se Quim Barreiros fosse escocês, diria que o melhor dia para se divorciar é 31 de Julho, pois a seguir entra o Fringe, que se desenrola todos os anos em agosto. Um agosto bipolar, claro, causador de dúvidas indumentárias ao festivaleiro, em que fugazes chuvadas imprevisíveis alternam com longas abertas de sol, que logo impelem ao refresco da garganta e da disposição, mesmo que estejamos numa ilha onde beber três cervejas exija tanto planeamento orçamental a um português como remobilar a casa no IKEA.
Exigência olímpica
O festival decorre em espaços espalhados pela cidade, especialmente no centro histórico. O pouco tempo entre espetáculos, ora em recintos concebidos para a finalidade ora em espaços heterodoxos, obriga a trepar as várias colinas de Edimburgo à pressa. Na capital escocesa, a arte acontece sempre que um artista reúne a atenção de um espectador que seja, na rua, num autocarro de dois andares, num vão de escada húmido onde nos imaginaríamos mais a chorar do que a rir ou num moderno centro de conferências onde assistiríamos em segurança a uma palestra de Kofi Annan. Vale tudo.
Os lugares diferem e a qualidade também. A infinidade de opções, dentro de variados géneros, e a inexistência de curadoria implicam que, a par de espetáculos brilhantes na sua conceção e eficazes na química com a plateia, haja também números forçados, sem substrato, em que o performer desespera por conquistar a atenção do público. Na verdade, o Fringe é de uma exigência olímpica para os artistas, muitos dos quais atuam os 25 dias seguidos – entre horas passadas a distribuir folhetos do próprio espetáculo e ressacas do tamanho de uma destilaria – sem nenhuma certeza do sucesso do seu produto. A procura é muita mas a oferta é inesgotável, sendo que o triunfo muitas vezes é alavancado pelas críticas favoráveis dos media da especialidade, que vão separando o trigo (ou o malte) do joio. Uma espécie de ‘mão visível’, da qual Adam Smith, nascido em Edimburgo, não reclama responsabilidade.
Conceitos inovadores, intelectualmente relevantes
A qualidade, ainda assim, predomina. Em comparação com um país que tem menos espetáculos de comédia por ano do que Edimburgo acolhe num dia, impressionam sobretudo aqueles cujos formatos fogem ao que nos habituámos a assistir por cá. Desde a comédia física inocente, mas ritmicamente sedutora e capaz de deixar um menir extasiado, de Zack and Viggo: Thunderflop, à magnificência dramática e o improviso versátil e velozmente processado de Steen Raskopoulos: You Know The Drill, passando pelo brilhantismo conceptual de Randy Writes a Novel, até à relevância moral e o emotivo equilíbrio comédia-tragédia de Adam Kay: Fingering A Minor on the Piano. Saímos de Edimburgo a invejar a quase perfeição técnica de alguns artistas, a tranquilidade em palco da maioria dos comediantes, a capacidade de adaptação às imprevisibilidades dos espetáculos ao vivo e a possibilidade (e, com tanta competição, a necessidade) de apresentar conceitos inovadores, intelectualmente relevantes e contracorrente.
Utopia de Edimburgo
Contudo, o Fringe é único sobretudo pela inexistência de censura e quem visita o Edimburgo celebra também o valor basilar da nossa civilização. Ao assistirmos a espetáculos late night com comédia subversiva, sem filtros, potencialmente ofensiva e que incluíam inclusivamente alguma nudez só porque sim, sentimos verdadeiramente um alívio de tensão com o espírito do tempo. Tudo isto num palco improvisado numa sala da Universidade de Edimburgo, onde se dão aulas durante o ano, na mesma época histórica em que universidades do Reino Unido silenciam opiniões para não ferir suscetibilidades. Numa sociedade em que os boicotes e as perseguições a opiniões divergentes são incentivados tanto pelas redes sociais como pelo meio académico, restam-nos futuras utopias como a de Edimburgo, um microclima de discurso livre, uma fortificação inabalável de liberdade de expressão, um mês de agosto em que se finge que tudo é possível.
*Humorista