Quando começou a cantar e a compor sambas, em 1998, já fora de horas, à porta dos 30 anos, achava que o primeiro país cujo carimbo teria no seu passaporte seria Portugal.Não foi, foi o Japão. E a vinda até Portugal parecia cada vez mais distante. Acabou por ser um convite de Caetano Veloso, esse padrinho da música e dos músicos brasileiros, a convidar Teresa Cristina, para o acompanhar numa tournée pela Europa. Hoje e amanhã, noColiseu dos Recreios, em Lisboa, Teresa Cristina apresenta o seu mais recente álbum “Canta Cartola”.
Como surgiu o convite para subir ao palco com Caetano Veloso?
O Caetano foi assistir à estreia do meu show Canta Cartola, ficou muito emocionado. Mas antes do show, eu já tinha encontrado com o Caetano e a gente conversou sobre o show, inclusive sobre a possibilidade de ele o dirigir. Mas ele tinha outras coisas, estava no meio da tournée com o [Gilberto] Gil, e não pôde. Mas tivemos uma conversa muito importante, na qual ele me deu muitas orientações. Dessa conversa com o Caetano botou algum tipo de ambição, de querer fazer um show onde eu pudesse deixar a timidez de lado – porque eu sou muito tímida e timidez e palco não combinam. O convite que ele depois me fez para ir com ele a vários países e apresentar este espetáculo, mostra um pouco da paixão que teve pelo espetáculo em si, mas mostra também a generosidade de um artista, que está nesse lugar que o Caetano habita na música brasileira e que é um lugar muito bonito, mas ao mesmo tempo é uma pessoa muito generosa. Ainda agora cantou com o Pedrinho Miranda uma música do Ismael Silva, mas depois pode cantar com a Anita ou com a Ivete Sangalo. O Caetano é uma ação inesperada, nunca podemos prever o seu próximo passo.
Essa proximidade de Caetano e a forma como ele acompanhou o espetáculo Canta Cartola, que deu origem ao convite para o acompanhar nesta tournée internacional, faz com que sinta o peso da responsabilidade?
Sim, mas isso já vem desde o espetáculo. Por isso procurei usar no palco os conselhos que ele me deu, não o queria desiludir. E agora, para ter uma ideia da loucura que está a minha cabeça, misturado com esse sentido de responsabilidade para não desiludir o Caetano, está a ideia de pisar solo português pela primeira vez. É um sonho de infância. Sempre quis conhecer Portugal e, por cantar samba, sempre pensei que o primeiro convite que teria para fora do Brasil seria para ir a Portugal. Mas não foi. [risos] O primeiro país que conheci foi o Japão! Aliás, já estava a achar que ia morrer sem vir a Portugal. Ainda por cima há três anos descobri que o meu bisavô era português e isso aumentou mais a minha ansiedade. Sinto uma ansiedade louca para estes concertos. Só falta tomar calmante.
Neste concerto vai apresentar uma figura incontornável do samba mas que em Portugal é um desconhecido.
Acho que o português que não conhecer Cartola pelo nome, vai-se identificar com a obra. Porque o Cartola tem uma melancolia no samba dele que é muito portuguesa. Pelo menos o olhar que eu tenho – que é um olhar romântico de uma pessoa que nunca esteve aí – é esse. Acho que Cartola e Portugal têm tudo a ver. Aliás, este show nasceu no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de janeiro. Convidaram-me para cantar cantigas portuguesas num festival literário, mas como tinha muito pouco tempo para preparar o show sugeri um compositor que tivesse a ver com a cultura portuguesa e a primeira pessoa que veio na minha cabeça foi o Cartola. Ele lembra-me as cantigas de amigo.
Para quem é tímida, enfrentar o palco só com a sua voz e acompanhada por um violão, como neste espetáculo, é particularmente assustador?
Sim! Por isso o encontro que tive com o Caetano antes do show foi muito importante para mim. Porque ele tentou injetar no meu entusiasmo um pouco de ambição em palco, porque eu tenho uma maneira de cantar muito tranquila e reta, sem floreio, não invento, canto de maneira bem simples. OCaetano disse-me que tinha de pensar, quando estivesse cantando, o que fariam as pessoas que eu admiro. Então tentava imaginar como seriam essas canções cantadas pela Gal Costa, pela Maria Bethânia, pela Nana Caymmi… Tentei trazer essas mulheres para a minha cabeça e muita da emoção que tenho em palco tem a ver com elas.
Como é que uma portelense, a cantar canções de um mangueirense, foi recebida pelos históricos do samba?
Tenho uma amiga, da velha guarda, que me disse: “Se você desfilar na Mangueira aí é que vai ser! Quando vier na minha casa vou-te dar uma banda!”. O mais engraçado é que ela não tem nem um metro e meio! Fico muito à vontade de ser portelense, como sou, com o amor que tenho pela Portela, e cantar um poeta da Mangueira. Acho um gesto importante e bonito. Em momento nenhum cantar Cartola me desmerece junto de um compositor da Portela. Muito pelo contrário. O Cartola foi grande amigo do Paulo da Portela, fundador da Portela. Mas intolerância é uma palavra que anda na moda no Brasil.
O Brasil precisa, neste momento difícil, de mensagens de união?
É um momento muito delicado. A gente tinha uma presidência eleita pelo voto popular, por 84 milhões de pessoas, e a presidente foi enxotada do lugar dela por crimes que não cometeu. Até hoje não se conseguiu uma prova que a Dilma seja culpada de algum crime. Jogaram o nosso voto no lixo. Não sei o que pode acontecer depois de tirarem a Dilma deste jeito leviano. O que virá depois disto, uma vez que o voto não vale nada? Este é o momento que o Brasil está vivendo: o poste mijando no cachorro, a banana comendo o macaco.
Pensar no futuro é difícil?
Sim, porque não quero pensar num futuro com essas pessoas com ódio, pessoas burras, uma burrice sem precedente. Acho que nós, brasileiros, temos de nos focar no presente. Acredito que o Brasil só vai respirar com tranquilidade quando tivermos novas eleições.
Ainda sabe arranjar unhas?
Hoje em dia faço unhas por puro deleite. Mas fui manicure durante 25 anos. Comecei a trabalhar com 13 anos, aprendi com uma tia minha. Arranjar unhas ajudou-me muito porque nasci e cresci no subúrbio, meu pai era feirante e tinha de sustentar seis filhos. Nunca sobrou dinheiro na minha casa. Com o dinheiro das unhas pude comprar as minhas roupas, pude comprar discos e o meu primeiro aparelho de som, onde ouvia música o dia inteiro, pude pagar o curso de vestibular para ir para uma universidade estadual. O dinheiro das unhas me colocou no mundo. Entretanto tive outros empregos que tinham um ordenado melhor, mas ainda hoje faço as unhas das minhas amigas.
Disse que o primeiro dinheiro que ganhou serviu para comprar discos e um aparelho de som. A música fez sempre parte da sua vida?
Sempre. O meu pai tinha três discos: um do Candeia, um do Alberto Ribeiro e outro da Gal Costa. A minha mãe tinha todos os discos do Roberto Carlos e um disco do Chico [Buarque] que para mim é emblemático e foi a minha primeira paixão. Lembro-me de ter uns oito anos e estar apaixonada por ele na capa do disco “Construção”. Achava, e acho, ele a coisa mais linda do mundo! Quando comecei a ganhar dinheiro a primeira coisa que fiz foi comprar todos os discos do Chico que me apareceram. E também discos americanos, como Donna Summer e The Commodores. Foi aí que comecei a construir a minha cultura musical. A minha mãe brigava muito comigo porque eu ouvia música todo o dia.
Mas não ouvia samba?
Não. Mas entretanto fui morar com uma pessoa e saí da vila da Penha para ir morar para o Leblon. O meu companheiro tocava com um grupo que misturava pop com ritmos regionais, como o samba. Nessa altura reencontrei o disco que o meu pai tinha, do Candeia, e deu um estalo na minha cabeça. Pensei como é que antes não dava valor para aquilo. Comecei a consumir tudo o que havia de samba, tornei-me amiga de toda a velha guarda da Portela, comecei a pesquisar tudo o que podia sobre o samba.
Mas quando começou a fazer da música profissão?
Comecei a compor por volta dos 28 anos. Quando comecei achei que já era tarde para começar a cantar e a compor. Mas conheci o Argemiro Patrocínio, da Portela, com quem depois fiz três sambas, e ele começou a cantar com 70 anos. Aquilo me deu um ânimo muito grande. Sou muito agradecida ao samba, foi o samba que me levou ao mundo. Tenho vivido coisas maravilhosas, como na Bulgária, em fui a um jantar na embaixada e havia um show com uma menina cantando samba e bossa nova. Achei lindo e no final fui conversar com ela – ela não falava uma palavra em português! Tinha decorado as letras. Não há homenagem maior à língua portuguesa.