Vervoort, a atleta paralímpica que se vai suicidar depois dos Jogos do Rio

Marieke Vervoort vai realizar no Brasil a sua última prova. Depois, a atleta belga está pronta a despedir-se da vida, mas só irá em paz se conseguir uma última consagração

A 15ª edição dos Jogos Paralímpicos tem início amanhã, com a cerimónia de abertura marcada para as 18h45 do Rio de Janeiro – 21h45 portuguesas. Ainda não há resultados e as medalhas ainda estão arrumadas, à espera dos novos donos. No entanto, a melhor e mais apaixonante história desta edição já está escrita e pronta a ser contada ao mundo. A de Marieke Vervoort, atleta belga de 37 anos que já tem marcado o final mais temido – e mais esperado, no seu caso: o encontro com a morte.

Campeã olímpica dos 100 metros livres em corridas de cadeiras de rodas nos Paralímpicos de 2012, em Londres, Marieke já tomou a decisão. Está tomada e é irreversível: os Jogos do Rio serão os últimos da sua vida. Depois, resta-lhe escolher o dia em que dirá o adeus definitivo ao mundo e partirá em paz – que só será plena se se sagrar novamente campeã olímpica no Brasil.

A autorização já está nas mãos de Marieke Vervoort 
A atleta sofre há vários anos de uma doença degenerativa incurável, diagnosticada em 2008, mas que já a atormentava desde longe. A uma inflamação num pé, aos 14 anos, seguiram-se problemas graves nos joelhos. Aos 20 anos já dependia de uma cadeira de rodas. Hoje tem a metade inferior do corpo paralisada, a visão reduzida a 20 por cento e dores insuportáveis, que a fazem passar noites em branco e lhe tiram toda a alegria de viver. Marieke Vervoort tem na sua posse o documento ‘libertador’, assinado por si, que autoriza um médico a aplicar-lhe uma injeção letal quando decidir acabar com a sua vida.

A Bélgica, refira-se, é o país no mundo com as leis mais permissivas sobre eutanásia. Esta opção – morte sem dor nem sofrimento – é legal desde 2002 para pessoas que sofram de doenças físicas ou psíquicas incuráveis. Ali, por dia, há cinco pessoas a decidir morrer e mesmo os menores de idade podem fazê-lo desde que com o consentimento dos pais e com um relatório psiquiátrico a avalizar a decisão.

Não é, ainda assim, um processo rápido. Até poder colocar a sua assinatura no documento, Marieke teve de convencer um psiquiatra de que a sua decisão não se devia a um estado de espírito momentâneo e ainda provar a três médicos diferentes que as dores que a atormentam são tão intensas que é insuportável viver com elas, além de ser impossível vir algum dia a melhorar.

Vegetal? Não, obrigada 
Curiosamente, a partir do momento em que ficou a saber que poderá ser ela a escolher o momento da partida que Marieke vive menos inquieta. Se antes só pensava no fim e em todo o processo que teria de atravessar até à morte, hoje experiencia sentimentos diferentes: “Quando quiser, posso pegar nos meus documentos e dizer: ‘Chega, quero morrer!’ Isso tranquiliza-me quando tenho muitas dores. Não quero viver como um vegetal.”

Palavras fortes de alguém com uma história de vida capaz de provocar um nó no estômago aos mais sensíveis à eterna questão do direito à vida e à morte. Todas as noites, Marieke vive com medo: o diafragma pode doer, a respiração faltar e os lábios azularem. Resta-lhe ligar a uma amiga, para ter companhia, ou a uma enfermeira, se se aperceber de que o caso é mais grave. “As pessoas veem-me sempre a sorrir e a praticar desporto, mas não sabem o que acontece quando estou em casa”, diz Marieke, deixando perceber o suplício que vive dia após dia.

Só se sente realizada quando treina: aí, é como se fosse outra pessoa. Todos os dias, um casal amigo leva-a até Lovaina, a 30 quilómetros de Diest, onde vive. Lá, espera-a o seu treinador, Rudi Voels, que já orientou a equipa vice-campeã olímpica em estafetas 4×100 metros em Pequim. Marieke é a sua única atleta paralímpica. “Nunca quer perder um treino. Às vezes vem com muitas dores e eu obrigo-a a voltar para casa”, explica o treinador que dia a dia prepara a belga para a última competição, uma década depois do início. No Rio, vai competir nos 100 e 400 metros, onde enfrentará a sua grande rival: a canadense Michelle Stilwell, com quem disputou o ouro e a prata em Londres.

Antes das corridas em cadeiras de rodas, Marieke foi bicampeã mundial de triatlo adaptado. Já na modalidade atual, conquistou a medalha de Ouro nos 100 metros e duas de prata, nos 200 e 400 metros. E o ano passado, além de ser campeã do mundo, quebrou recordes nos 400, 800, 1500 e 5000 metros.

De ouro, ao adeus em Lanzarote 
Para o Brasil, Marieke levou um papel escrito à mão com uma lista de quase 20 medicamentos. Não pôde levar o seu companheiro inseparável, o cão chamado Zen, mas nem por isso perde o foco. “Quando me sento na minha cadeira de competição, tudo desaparece. Expulso os pensamentos obscuros de morte, tristeza, sofrimento e frustração. É assim que ganho as medalhas de ouro”, salienta, numa extensão da mensagem que leva na parte de trás da cadeira de rodas onde compete: “Believe, you can”.

De ideias fixas, já tem tudo planeado para o dia final. Espera que os pais e dois amigos estejam ao lado da cama, tem uma carta escrita para ser lida nesse momento e até quer músicos presentes para transformar aquele num momento de alegria. Depois, deseja ser cremada e já escolheu o local onde devem ser espalhadas as cinzas: Lanzarote, a ilha mais oriental do arquipélago das ilhas Canárias “onde a lava se une com o mar”: “É um lugar que me transmite paz e tranquilidade. Quero terminar ali”.

O pedido está feito. Mas há mais um: “O Rio de Janeiro é o meu último desejo. Espero acabar a minha carreira com um lugar no pódio.” Consiga ou não, Marieke já conquistou um lugar na história do desporto. E no coração de todos.