Um elefante numa loja de cristais. Um boi a olhar para um palácio. Um macaco em mármore cor-de-rosa. Mediante o contexto, o conteúdo altera-se. E quando se altera, um macaco em mármore rosa pode ter “uma inteira civilização a ajoelhar-se à sua frente”. Para Devendra Banhart, que lança amanhã o seu mais recente álbum, “Ape in Pink Marble”, é este o encanto da poesia, “palavras concretas cuja justaposição e relação criam algo inesperado que pode ser interpretado de várias formas. A poesia não são instruções”, disse ao i, numa passagem por Lisboa para dar a conhecer o novo trabalho, uma conversa que começou em português, uma língua que o músico de 35 anos considera imperdoável ainda não ter aprendido. “Para mim, o título deste álbum é uma espécie de piada adolescente que reflete a forma como a sociedade pode, por vezes, ser cegada pelo contexto, e isso pode fazer-nos perder a noção do conteúdo”, acrescenta.
Considerado um dos grandes embaixadores da folk psicadélica, quando lança o nono álbum, para Devendra Banhart, o conteúdo continua a estar acima da forma e do contexto, apesar de recusar a ideia de que a sua música é particularmente complexa, numa incongruência que roça o sedutor. “Não é que a minha música seja altamente conceptual e, portanto, impenetrável. Não acho que seja nada disso. O meu trabalho é bastante acessível; acho que há trabalhos bem mais inacessíveis, mais cerebrais e académicos. Apesar de tentar ser uma referência, a maior parte das vezes acho que aquilo que faço não é nada sofisticado. No contexto de um mundo mainstream, o que eu faço nem é música. Muitas vezes penso mesmo: ‘Meu Deus, estou a ser tão explícito! Tenho de tentar ser mais subtil com as minhas referências.’ Outras vezes, o objetivo é justamente fazer algo óbvio, porque o humor é uma grande parte do meu trabalho. No aeroporto, por exemplo, quando me perguntam o que faço, digo unpopular pop. E sou muitas vezes chamado ao controlo de segurança… (risos)”, conta, com a mesma displicência de quem diz que a realidade da sua vida é que passa os dias a trabalhar no seu jardim.
A importância de dizer I love you Apesar da multiplicidade de leituras que a poesia de Devendra permite, há uma leitura que o norte-americano que cresceu na Venezuela não quer que façam deste novo trabalho. Sim, “Ape in Pink Marble” é um álbum marcado pela morte. A morte de Gary Banhart, pai biológico de Devendra, há dois anos; a morte do amigo, pintor e fundador do Underground Museum Noah Davis; a morte do amigo e professor de poesia Bill Berkson; a morte do amigo sérvio Milos Kras; a morte de Asa Ferry, músico e líder dos Kind Hearts & Coronets – uma espécie de irmão para quem Devendra escreveu o tema “Middle Names”, ainda antes da sua morte. Dias antes desta conversa, mais uma morte, outro amigo, Keith Petrocelli.
Muitas mortes. Muitos lutos. Muitos processos. Mas este não é um álbum sobre nada disto. E ao mesmo tempo é. “Qualquer pessoa que perde, num curto período de tempo, um número considerável de pessoas que lhe são muito próximas vive momentos difíceis. Mas eu não escrevi um disco sobre isso. O que aconteceu foi que, enquanto escrevia este disco, muitas pessoas morreram. E isso acabou por influenciá-lo, ainda que subconscientemente, e de uma forma que não esperava. A morte tornou-se parte deste álbum, mas não decidi conscientemente que ia escrever, por exemplo, uma canção sobre como é este processo. Até porque o processo ainda está a decorrer. Acho que o choque da perda e o processo do luto ainda estão a decorrer para mim. Mas não me virei para a música porque nunca uso a arte como catarse. Uso a arte pela arte.”
Devendra ainda espera que todas estas pessoas lhe toquem à porta. O ar ainda lhe falta, as noites ainda são mais longas, o silêncio ainda se olha como num transe. E não há palavras certas que lhe possam dizer nem promessas de que a dor traz prazo de validade. O que sabe, isso sim, o que já descobriu, é que perante a impotência da morte há um quê de cura em dizer àqueles que ama que os ama. Enquanto há tempo. “Percebi que a única coisa que posso fazer é dizer às pessoas que amo que as amo. E por isso agora estou sempre a enviar mensagens a dizer ‘I love you’.” E até agora ninguém lhe disse para parar com isso. “Toda a gente gosta de ouvir dizer que é amada.” Palavra do jedi Devendra Obi Banhart.