Norbert Sudhaus, para quem não conhece, foi o vencedor da maratona dos Jogos Olímpicos de 1972, em_Munique. Foi e não foi. Para mim foi.
Nos livros bem podem teimar que quem chegou primeiro foi o americano Frank Shorter, por acaso nascido precisamente em Munique, em 1947. Cada um escreve o que quer e vê a vida da cor que mais lhe agrada. Eu sou a favor de Norbert Sudhaus.
A um quilómetro da meta, no Estádio Olímpico, Frank Shorter, que se havia adiantado irreversivelmente ao belga Karel Lismont e ao etíope Mamo Wolde, ouviu um bruá que lhe gelou o sangue nas veias. Os espetadores saudavam o vencedor da maratona na sua volta à pista enquanto o primeiro classificado da prova ainda cuspia os bofes pela boca nas passadas finais. Lembro-me da frase assassina do comentador televisivo português: «É um golpe de teatro!».
Mais tarde vi um documentário americano. Nervoso, o relatador insistia: «É mentira! É mentira! Não foi esse que ganhou!».
Esse era Norbert Sudhaus. De certa forma tinha ganho: e comportava-se como tal.
Não faço ideia do atropelo de pensamentos que calcorreiam pela cabeça de um homem que corre a maratona. 42 quilómetros e 125 metros! Dá para pensar nesta vida e na outra. Dá para pensar numas quarenta vidas…
Mas imagino o que terá passado pela cabeça de Frank Shorter quando, depois de ter palmilhado mais de 40 quilómetros daquele martírio de 42,195, a ver-se já de medalha de ouro ao peito, escutou os gritos entusiasmados da multidão que, surpresa, aplaudia um jovem alemão de sorriso aberto e braços no ar.
Imagino que Frank Shorter tenha soltado um ou dois palavrões e que tenha corrido ainda mais depressa para tentar perceber o que lhe havia acontecido. A ele e à maratona.
Mais tarde, diria: «Vi os juízes retirarem da pista um corredor, mas continuei convencido de que tinha ganho, tal a distância a que deixara os meus adversários mais directos».
Quem era arrastado para fora da pista com tamanha sem cerimónia era Norbert Sudhaus, 16 anos, estudante._Mas, antes que lhe deitassem a mão, ainda celebrou durante trezentos metros a sua tão incrível como histórica vitória.
Lá está: «Um descaramento divino!».
E um fantástico sentido de humor.
De calções e camisola de alças com as cores da Alemanha, nessa altura Ocidental, saltou de um arbusto e disparou para o estádio. Com o tal descaramento divino roubou a festa de_Shorter e deixou o público em delírio. Infiltrou-se na maratona como se entrasse à surrelfa num casamento de desconhecidos.
Alegre, saboreou os aplausos enquanto o deixaram os bisonhos juízes sem qualquer sentido de humor. Há gente que leva maratonas demasiado a sério. E a vida também.
Fresco, descansado, cheio de vigor, Norbert Südhaus não parecia ter acabado de correr 41 quilómetros e 795 metros. Não parecia e não tinha. Fez a sua festa, acenando reconhecido e gabarola, disfrutando daquele momento único que deveria ter sido de Frank Shorter.
Para Frank Shorter, houve frieza. O povo já tinha tido um vencedor, não queria outro. Além disso Südhaus era mais simpático e não usava bigode.
Nunca até hoje encontrei, fosse em que lado fosse, uma explicação para a tropelia de_Norbert Sudhaus. Por isso, prefiro pensar que o fez apenas por descaramento, neste caso verdadeiramente divino.
Frank Charles Shorter ouviu até assobios. As pessoas queriam a vitória de Norbert Sudhaus. Eu que vi a pantomima pela televisão também preferi a vitória de Sudhaus. Afinal já estava farto de ver Frank Shorter a correr e, quatro anos depois, vi-o outra vez quando ganhou a medalha de prata na maratona de Montereal. O que nunca tinha visto era um rapazola ganhar a maratona sem a ter corrido. Deixou as chatices dos 42 quilómetros e 195 metros para os outros e limitou-se aos metros mais importantes: os últimos.
Não sei, nem quero saber, se alguma vez Sudhaus correu uma maratona. Sei que ganhou uma e chega-me. Em todo o mundo, milhões de espetadores viram-no chegar em primeiro e ser aplaudido como tal. Fez a festa. Frank Shorter teve direito a uma festa requentada. Uma festa que já não era original. Nunca mais foi campeão olímpico e ficou sem saber bem como era sê-lo. Norbet Sudhaus antecipou-se-lhe de braços no ar até que os juízes trombudos e mazombos lhe caçaram a alegria. Dele e do público.
Assim mesmo: como um golpe de teatro…
afonso.melo@sol.pt