“Que mundo tão parvo/ Onde para ser escravo é preciso estudar.” Os versos da música dos Deolinda, que viraram o hino da manifestação “Geração à rasca” em março de 2011, podem já ter cinco anos, mas a precariedade dos contratos de trabalho continua a ser uma situação preocupante. Uma realidade transversal a profissões, idades e graus académicos. Enfermeiros, advogados, arquitetos, jornalistas, bolseiros de investigação das mais diversas áreas – a lista prossegue, (demasiado) extensa.
Se os dados do desemprego se conseguem aproximar de forma mais real dos verdadeiros números do país, chegar à quantidade de trabalhadores precários é um desafio mais difícil. Desde falsos recibos verdes, recibos não pagos a estágios profissionais não remunerados, tudo conta para o lote de pessoas que vão fazendo a vida com a incerteza como única base.
O i traz-lhe relatos de quem já passou – ou passa – por estas situações. Aviso à navegação: algumas histórias davam um verdadeiro guião de filme.
Ricardo Pereira, 32 anos, Arquiteto
Acabei o curso de Arquitetura em 2010. Ainda na faculdade comecei a trabalhar num ateliê a recibos verdes. Fazendo as contas, foi o sítio onde, até hoje, ganhei mais dinheiro à hora, e isto antes de sequer ser arquiteto. Depois de acabar o curso arranjei um estágio de nove meses para depois me inscrever na ordem. Nesse sítio, por regra, não pagavam a estagiários e, nesta altura, isso ainda não era obrigatório. Por isso, pagar ou não cada estágio de acesso à ordem dependia das políticas internas de cada ateliê. Fui uma exceção, porque eles gostaram do meu trabalho e, ao fim de um mês, começaram a pagar-me. Fiquei a recibos verdes, como toda a gente naquele ateliê. Alguns trabalham lá há mais de 20 anos. A única pessoa que tinha contrato era secretária. Quando eu ainda estava na faculdade, já tinha começado o boom da crise, e depois, no ateliê, isso começou a notar-se ainda mais. Começaram os primeiros pagamentos em atraso. Pediam–nos paciência. Pediram-me duas ou três vezes para passar recibos e declarar dinheiro que não tinha recebido, para acertar contas das faturações. Neguei-me sempre a fazê-lo. Posso dizer que nessa empresa em que fiz o estágio continuei a receber (à hora) exatamente o mesmo depois de o terminar. E o meu trabalho foi exatamente igual ao que fazia ainda antes de ser arquiteto. Isto é importante porque, muitas vezes, as pessoas que são contra a obrigatoriedade do pagamento dos estágios justificam-no por haver um tutor para os estagiários e que há um sistema de aprendizagem. Hoje em dia, com os estágios do IEFP, há ateliês que têm batalhões de estagiários que asseguram uma produção constante de trabalho e que é, na prática, paga pelo Estado.
Quando o período de estágio acaba, entram outros. Os gabinetes de arquitetura que o fazem não são penalizados por ninguém e continuam a dar resposta a encomendas que, de outra forma, não conseguiriam assegurar. A meu ver, isto é uma barbaridade. Não se pode justificar com as histórias da crise e de falta de encomendas a exploração de terceiros. A teoria da escravidão não pode ser aplicada ao século xxi, mas a teoria dos precários pode. Quem só consegue pagar o salário a dez pessoas não pode ter lá 40, isto está nos estatutos de deontologia da nossa ordem.
Tratar as pessoas como carne para canhão, deontologicamente, é incorreto, mas estes estágios são legais e o que acontece com os estágios do IEFP é muito isso. Voltando à minha história, depois das dificuldades nos pagamentos chegaram os atrasos, sempre a pedirem paciência com um ar muito natural. Pediam-nos também para não falarmos em público para não queimar o nome do ateliê. Chegou a um ponto insustentável em que tive de me vir embora e só fiquei lá um ano por sanidade mental, para não ficar parado em casa. Ainda hoje me devem um ano de ordenado. Consegui arranjar depois um trabalho mais ou menos estável e estou agora a abrir o meu ateliê com uma sócia.
Quando tivermos de chamar alguém vamos explicar logo que não conseguimos assegurar um trabalho contínuo e vamos contratar consoante o trabalho, as pessoas fazem aquilo durante aquele tempo. O que estou a fazer não é nada de especial, não devo ser apontado como um exemplo de ética, pois apenas faço o que está estipulado. O respeito pelos colegas profissionais é um dos estatutos básicos do regulamento de deontologia dos arquitetos. Mas posso contar que o desespero das pessoas é tal que há uma proliferação da precariedade tão grande que é como se se tratasse de uma coisa normal. A maior parte dos meus amigos acha que é normal ficar a recibos verdes o resto da vida. Não quero ser extremista, mas a filosofia por detrás disto é a banalização do mal.
Mia Lourenço, 30 anos, Figurinista
Tirei Design de Moda na Faculdade de Arquitetura, acabei o curso em 2007 e fui para Londres à procura de trabalho. Não fui numa altura muito boa e voltei. Entretanto criei uma marca que teve algum sucesso, Os Burgueses. Ao final de cinco anos, a marca terminou porque, realmente, a crise também não ajudou. Ainda no tempo em que tinha a marca comecei a trabalhar em cinema, como figurinista, e continuei a fazê-lo. É o que faço neste momento e é disso que vivo. Sou figurinista freelancer de cinema e publicidade. Não me vejo a mudar de profissão. Percebi que o que gosto mesmo de fazer é criar bonecos, ou seja, criar guarda-roupa para as personagens depois de ler um guião, e é isso que me vejo a fazer na minha vida. Nunca tive um contrato de trabalho, mas obviamente que penso nisso a longo prazo, por exemplo, a trabalhar para uma produtora de cinema a tempo inteiro ou de televisão para as novelas. Obviamente, sei que é uma coisa mais segura. Apesar dos recibos verdes e afins, a vida está a correr-me bem. Mas considero-me precária, tendo em conta a quantidade de IRS que pago por ano. Desconta-se tanto que, às vezes, dás por ti e não recebeste nada. Depois também nunca sei quanto vou receber em cada mês. O trabalho de freelancer é sempre um bocadinho guardar dinheiro. Pode ser um mês bom, com três publicidades, e isso é ótimo, mas há algumas que só são pagas a 60 ou 90 dias e é preciso gerir isso. Por exemplo, o mês de agosto é paradíssimo e, por isso, há que ter dinheiro guardado para se viver com alguma estabilidade e não estar na corda bamba.
Júlio Pereira (nome fictício), 23 anos, Produtor de conteúdos
Acabei o curso de Comunicação Social em 2014 e fui estagiar (ainda era um estágio académico) para um diário. Ali disseram-me logo que não ia ficar, o que foi ótimo, tendo em conta o que me aconteceu depois. Mas, para primeiro estágio, correu muito bem. Em janeiro de 2015 prometeram-me um estágio profissional do IEFP num centro cultural em Lisboa. Fiquei lá como voluntário até abril – escusado será dizer que o estágio nunca chegou. Nesse mesmo mês entrei noutro diário com outros três jornalistas estagiários, com a promessa de estarmos um mês à experiência e, caso gostassem de nós, passávamos para estágio profissional remunerado. Esse estágio acabou por chegar dois meses depois. Uns tempos depois, ia o meu estágio a meio, estava a receber normalmente, o jornal fechou. Fui para outra redação onde me disseram do IEFP que poderia retomar o estágio. Tal nunca aconteceu por culpa da empresa. Fiquei lá uns meses numa situação ilegal, a receber debaixo da mesa, enquanto o estágio não era de novo aprovado. Passava notas de despesa que pedia à minha mãe. Acabaram por me dispensar este verão. Contas feitas, trabalhei de forma contínua mais de um ano e meio e apenas recebi dois meses do estágio e alguns pagamentos por debaixo da mesa. Agora trabalho numa produtora, também a recibos verdes.