Desconfiar de quem não gosta do Chico Buarque, detesta chocolate, não gosta de comer ervilhas. E desconfiar também de quem diz que os rapazes nunca choram e que o cor de rosa é para meninas. E confiar no Tom Jobim. Sempre. Conselhos para a vida, que Capicua assina na faixa “Confio(des)confio”, parte do livro e disco “Mão Verde”, editado hoje pela Valentim de Carvalho. Como que a dizer que, acima de tudo, há que desconfiar de quem não sabe ser criança. Ou de quem se esqueceu que todas as pessoas grandes foram um dia crianças.
É em jeito de lembrança disto que este “Mão Verde” – em referência à expressão francesa avoir la main verte, que significa ter talento para a jardinagem – quer falar das “plantas, hortas, flores, comida e muitas outras coisas boas” que nos rodeiam. E quer descomplicar, porque é na infância que se pode (deve) fazê-lo, mesmo (ou sobretudo) quando se trata de temas mais complicados: “Na fábula não moralista, os bichos e as bichas vivem o amor em liberdade. Casam uns com os outros e umas com as outras e nem o rei da selva tem nada a ver com isso. Têm filhotes e filhotas. Fazem ninhos, fazem tocas. Aninham-se e tocam-se. Encostam os focinhos em público, catam-se alegremente e cheiram-se muito. Na fábula não moralista, a moral da história é que nas histórias de amor, o amor é sempre muito mais importante do que a moral”, escuta-se na faixa “A Fábula Não Moralista”, exemplo claro de como, para Capicua e Pedro Geraldes, as crianças devem ser tratadas como adultos… com menos centímetros.
E menos moralismo e preconceito. “Se fizesse um disco para adultos com estes temas seria mais difícil não cair no moralismo, no panfletário e no dedo apontado. Aqui é mais fácil porque há um lado lúdico associado. Há um interesse intuitivo, que se tem na infância, por temas como estes, das boas práticas ecológicas, mas também por outros que aqui abordamos. Sobretudo quando esses temas são tratados de uma forma bem disposta e irónica, com recurso a personagens que vão aparecendo, como animais, árvores, plantas, que tornam o discurso divertido e retiram-lhe uma carga mais pesada. Estamos a dizer coisas sérias, mas também a brincar”, explica a rapper Capicua, ressalvando, porém, que a brincadeira, num projeto deste género, nunca pode cair em patetice.
“Mão Verde” surgiu inicialmente do repto lançado pelo São Luiz Teatro Municipal a Capicua para que programasse uma série de espetáculos para este espaço, entre os quais um a pensar nos mais mais novos. “Aceitei logo e com entusiasmo porque há muito que tinha vontade de fazer um livro de lengalengas, que é algo que me marcou desde miúda, e achei que ter um prazo marcado de um espetáculo seria o ideal para realmente o fazer. Sempre gostei de jogos de palavras, de rimas, das cantilenas de criança e queria explorar isso. Ainda por cima, na minha escrita normal, já brinco com as palavras. Aliás, se não fosse pela importância da palavra eu nem faria música. A lengalenga é o exacerbar das aliterações, das repetições, dos trocadilhos, dos jogos de palavras, das pescadinhas de rabo na boca”.
Para musicar as suas palavras desafiou Pedro Geraldes, dos Linda Martini, que assumiu o desafio com o mesmo tipo de abordagem: “Fui pela via da simplificação e da contenção, tentando ter música luminosa e alegre, mas na qual me sentisse representado. A minha outra preocupação foi tentar ir a diferentes géneros musicais para ser didático, tal como acontece com as letras. Acho que tentámos, os dois, levar a música a sério, mesmo sendo para crianças”. Ou sobretudo sendo para crianças, contraria Capicua. Até porque este não quer ser um trabalho que trate as crianças como “patetas”, nem sequer ser um trabalho apenas para crianças. “Há aqui temas que acho que os adultos também vão gostar. Aliás, há detalhes e referências que acho que só os adultos vão entender, várias camadas de entendimento. As crianças vão precisar de tempo para algumas ironias ou metáforas”.
O concerto no São Luiz, em junho, correu “tão bem” que não podia esgotar-se ali, num momento. E foi assim que esta “Mão Verde” ganhou forma de livro e disco, ao qual se juntaram entretanto as ilustrações de Maria Herreros.
Agora, a dupla prepara-se para levar “Mão Verde” novamente aos palcos – das salas de espetáculo mas também de escolas. E isso significa estarem preparados para todas as perguntas. “O bom de tocar este trabalho ao vivo é que as crianças têm uma espontaneidade que faz com que façam perguntas, que reajam a meio das músicas, e que falem sempre com muita sinceridade. Ainda no outro dia, uma criança perguntava-me, depois de ouvir ‘A Fábula Não Moralista’, o que era a moral. Mas depois, na mesma sala, há outras crianças que nos perguntam coisas mais simples como porque é que vestimos determinada roupa ou como é que se afinam os instrumentos. E há outros que contam histórias privadas, algumas que até envergonham os pais. As crianças não têm mesmo filtro nenhum e isso faz com que estes espetáculos sejam diferentes daqueles que estamos habituados a fazer. Nos nossos outros concertos não há esta interação, as pessoas não nos dizem tudo o que pensam. E se calhar ainda bem!”, remata Capicua, com uma estrondosa gargalhada. Como que a dizer que devemos desconfiar de quem não sabe gargalhar.