É um dos nomes mais importantes da teoria política contemporânea. Juntamente com o seu companheiro, Ernest Laclau (já falecido), escreveu há 30 anos a influente obra “Hegemonia e Estratégia Socialista”. Teorizou com ele a necessidade de uma rutura populista que fosse capaz de fazer as reformas radicais necessárias para vivermos em democracia pluralista. Participa no próximo dia 7 de outubro na conferência “Que democracia?”, organizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, um evento muito interessante que vai trazer a Lisboa grandes figuras do pensamento mundial como o prémio Nobel Vargas Llosa, o sociólogo Wolfgang Streeck e o filósofo Daniel Innerarity. A conferência será aberta pelo professor da Universidade de Yale Iam Sapito.
Como vê a polémica que apareceu nos últimos meses sobre os burquínis?
É uma coisa muito típica dos franceses. É o único país em que podia acontecer uma coisa como esta. De qualquer forma, eu não sou das pessoas que consideram que todo o vestuário é possível e estou completamente de acordo com as medidas que foram tomadas em França, Bélgica e Alemanha para interditar o nicabe (traje em que apenas se veem os olhos). Não é tanto uma questão de feminismo, mas de segurança: não temos o direito de passear no espaço público de uma forma que não podemos ser reconhecidos. Penso que é um ponto de vista justo, de tal forma que essa posição, na Bélgica, recolheu a unanimidade de todos os partidos políticos. Pelo contrário, toda esta história sobre o véu e os lenços na cabeça, em França, é muito exagerada. Chama-se a este tipo de posição laicos integristas. Vão na laicidade tão longe que proíbem a expressão de qualquer tipo de religiosidade no espaço público, e com isso eu não estou de acordo. Vão longe demais. Eu sou mais moderada, mas também não defendo a posição de que qualquer tipo de vestuário é possível nas nossas ruas. Finalmente, o burquíni não faz mal a ninguém.
Fala frequentemente e de uma forma crítica de uma despolitização das nossas sociedades, uma anulação do conflito político em favor de um suposto consenso. Isso não tem como contrapartida a passagem do conflito para o exterior e tornar o planeta um local de guerra permanente?
Justamente, é, aliás, a tese principal de um dos meus livros, recentemente traduzido no Brasil com o título “A Ilusão do Consenso”. Na medida em que se vive uma situação pós-política, em que não há diferenças entre esquerda e direita, em que parece não haver alternativas ao neoliberalismo, verifica-se que há cada vez mais cidadãos que não votam porque consideram que não há diferenças entre os programas dos partidos de centro- -esquerda e centro-direita. É a isso que eu chamo pós-política: os partidos deixam de funcionar como instrumentos para os cidadãos decidirem caminhos políticos diferentes. E sobretudo, e é isto que é fundamental em minha opinião, deixa de haver identificações coletivas. Na sociedade atual fala-se muito do individualismo e afirma-se que deixou de haver identidades coletivas. Eu acho que isso não é verdade: não deixou de haver identidades coletivas. Há um autor que eu considero muito interessante, que é prémio Nobel da Literatura [em 1981], Elias Canetti, que no seu livro “Massa e Poder” explica muito bem que nós estamos divididos entre duas forças: há pulsão para a individualidade, mas há outra pela massa, pela possibilidade de participar num coletivo. Veja-se, por exemplo: as pessoas têm a necessidade de se reconhecerem num “nós”. Na política, na medida em que este “nós” não se expressa atualmente na diferença de um programa político, esse sentimento coletivo passa a expressar-se noutro registo. Eu insisto que esse conflito e identidade, como já não há esquerda e direita, passam para o quadro moral, para uma diferenciação entre o bem e o mal. Isso leva–nos à questão do burquíni: tendemos a tentar descobrir fontes de comunidade que podem ser religiosas, étnicas. As pessoas têm necessidade de se diferenciar e também de fazer essa diferença em termos de coletividade. Mas se não o podem fazer num projeto de direita e de esquerda, vão fazê-lo através de marcadores de projetos étnicos ou religiosos. É isso que explica a radicalização e o exacerbar destas questões. Mas não se trata de uma politização, resulta até de um processo de despolitização das nossas sociedades. Na medida em que não nos podemos identificar em termos de esquerda e de direita, vamos identificar-nos do ponto de vista do vestuário, da religião e dos valores. Penso que isso é muito negativo para a democracia.
Na sua análise e trabalho faz apelo ao conceito de político de Carl Schmitt, o seu “decisionismo”, em que a política nasce da capacidade de estabelecer o par amigo e inimigo. No entanto, considera que, em democracia plural, isso tem de ser matizado: não pode haver inimigos, mas apenas concorrentes. Para si, temos de aceitar o adversário e as suas ideias. Mas podemos aceitar tudo, o racismo, as desigualdades?
Uma pequena distinção muito importante: eu falo de adversários, e não de concorrentes. Concorrentes é um termo que é, em minha opinião, não político: vem de competidores e comporta a ideia liberal de que temos interesses diferentes e que temos de fazer um conjunto de processos que permitam agregar esses interesses no quadro de um consenso. Sempre com a ideia de que não há alternativa, a única coisa que se pode é arranjar pequenos acomodamentos no interior desta situação, nunca podendo transformá-la. Pelo contrário, para mim, a política está ligada ao antagonismo, quer dizer, é um tipo de conflito muito particular: é um conflito que não pode ter uma solução racional. Não é uma questão, como os liberais defendem, que é sempre possível encontrar um consenso e um acomodamento de interesses: não, há conflitos que não podem ter soluções racionais, e é isso a política. Se pudéssemos ter sempre soluções racionais, não haveria necessidade de política, bastaria uma administração das coisas. Estou de acordo em que a política nasce dessa relação antagónica de amigo e inimigo que não pode ser dirimida racionalmente . É isto a política. Mas Carl Schmitt conclui que a democracia pluralista e liberal é um regime que é inviável porque não se pode, no interior da sociedade, aceitar em democracia a legitimidade do conflito porque, se se aceita isso, isso vai levar-nos à guerra civil. Se não podemos pensar o conflito senão no quadro do par amigo e inimigo, nesse caso ele tem razão porque, ao inimigo, nós queremos destruí-lo e erradicá-lo. E isto não é compatível com a democracia. Mas eu defendo – e isso é a base de todo o meu posicionamento – uma forma diferente de colocar este antagonismo que seja consentânea com a existência de uma democracia pluralista: o conflito entre adversários. É a ideia de que vamos lutar, mas reconhecendo o direito dos outros a lutarem também pelo seu ponto de vista. A democracia é a capacidade de colocar a dissensão de modo a permitir a vida em conjunto apesar da luta política. Naturalmente, no interior daquilo a que chamo o conflito agonístico, há coisas que não podem ser aceites. Tem de haver um consenso conflitual, uma base de consenso que são os princípios éticos e políticos para se viver em conjunto. Por exemplo, nas nossas sociedades contemporâneas não podemos admitir um partido que queira o restabelecimento da escravatura. A base desse consenso conflitual é reconhecer os princípios de liberdade e igualdade para todos. Aqueles que não aceitam a igualdade e dizem “os negros, os judeus e os imigrantes não são iguais, esses nós não os podemos aceitar”, não são adversários, são inimigos.
Quando se vê a situação grega e se verifica que não é respeitada a escolha dos eleitores pela União Europeia, isso não nos faz pensar que, se calhar, esse conflito agonístico não é possível e continuamos no quadro amigo e inimigo?
Sim, mas isso por causa da União Europeia. Não é nada que seja interno à política grega. O Syriza é, para mim, um bom exemplo daquilo a que chamo populismo de esquerda: é um movimento que quer alterar as relações de força hegemónicas, mas sem pôr em causa o quadro da política pluralista. Se quiser, a expressão de uma política antagonista é fazer a revolução. Isso é uma política antagonista. Não era a posição do Syriza. Os partidos populistas de esquerda são os que aceitam lutar através das instituições democráticas e querem chegar aos poder através dos procedimentos democráticos, esperando que, no momento em que cheguem ao poder, possam mudar as coisas. Aquilo que se passou na Grécia é que chegaram ao poder mas a União Europeia proibiu-os de mudar as coisas. Colocou-lhes a faca na garganta. Não estou de acordo com quem acusou Tsipras de traição. Ele não tinha alternativa. Mas esse não é o problema da política grega, é o problema da Europa. É um problema muito complicado. Eu não estava de acordo com a parte do Syriza que criou o partido União Popular, que defendia que se devia abandonar o euro e a UE. Não era realista e, de qualquer maneira, não era aquilo que queria o povo grego. Os gregos não votaram pela saída da UE e do euro. Apesar disso, vivem numa situação impossível.
Como é possível estar na União Europeia e no euro e ter soberania popular?
A posição que eu defendo é que este populismo de esquerda, para ter a capacidade de fazer transformações, tem de ter dimensão europeia: um país só, ainda por cima um país pobre e pequeno como a Grécia, não tem nenhuma hipótese. Mas, por exemplo, se tivéssemos uma situação em que para além da Grécia, tivéssemos Portugal, em que há um governo de esquerda, Podemos em Espanha, e Itália… então teríamos a possibilidade de fazer alguma coisa. Penso que é preciso um movimento à escala europeia para transformar a UE. Há muita gente que defende que isso é impossível, mas não estou de acordo. É possível mudar. Esta Europa que temos é resultado do domínio, nos diversos países, de uma direita liberal. A Europa é o que os diferentes governos são. Sei que em Portugal vocês têm também problemas com a UE, que quer controlar as políticas do governo. Não acredito que a solução seja deixar a Europa, mas conseguir estabelecer relações com outros países para transformar a correlação de forças.
A Europa é diferente da União Europeia. No seu trabalho, a ideia de conseguir um populismo de esquerda está ligado a um processo de construção daquilo que é o povo. Como é possível construir um povo europeu?
Para desenvolver um projeto político é preciso fazê-lo no quadro dos povos que estão na Europa. No mês passado estive na Noruega e disse-lhes que gostaria que se desenvolvesse um projeto populista de esquerda, a partir dos países da UE, que pudesse entusiasmar os noruegueses. Penso que isso que é importante. É preciso desenvolver um projeto político que dê vontade a outros países de aderirem. Não se pode construir alguma coisa a nível da Europa geográfica, é preciso partir de onde há já embriões desse trabalho.
Não pensa que a União Europeia foi construída e formatada para ser um mercado, e não para ser um processo democrático?
Não. É sobre isso que eu divirjo de muita gente de esquerda. Há quem defenda que é impossível mudar a Europa porque ela é um projeto neoliberal que foi criado para isso. Não estou de acordo. Acho que é possível transformar esta UE. A minha posição é que não há alternativa à União Europeia; a opção soberanista e nacional, na globalização, é impossível e irrealista. Eu sei que é complicado imaginar e criar uma outra Europa, mas não há outra possibilidade. Não vejo como nos dias de hoje, em tempos de globalização, um país pudesse ter uma política independente. Estamos todos no mesmo barco, é preciso que lutemos juntos.
É contra o Brexit, portanto?
Eu era pelo Bremain. Sabe, o Brexit não foi, fundamentalmente, uma rejeição da Europa. Aliás, no Reino Unido, estão-se a borrifar para a Europa, para eles não é um problema importante (risos). Uma semana antes do referendo, aquilo que os britânicos procuravam mais no Google era “o que é a União Europeia?”. O meu problema não é eles terem saído, é não compreender como é que entraram. Eles não se sentem nada da União Europeia. O voto do Reino Unido foi uma rejeição, em muitos setores populares do norte de Inglaterra, do governo, mas a Europa é uma questão secundária para eles.
Não pode ser visto também como uma contestação à falta de democracia que os processos na União Europeia têm implicado?
De certa maneira, está ligado à pós-política, em que as pessoas ficam com a sensação de que não faz diferença votar ou não. Dá-se-lhes a possibilidade de, com um voto, mudarem alguma coisa: finalmente, temos a possibilidade de ter voz. Foi um grito de democracia: “Temos a possibilidade de decidir o que se passa neste país.” Mas não foi porque amassem a Europa e quisessem melhorá-la, mas porque se estão verdadeiramente a borrifar para ela.
Defende a existência de uma rutura populista de esquerda a nível da UE, mas é possível ela existir em países como a França, onde o populismo foi tomado pela extrema-direita?
É muito mais difícil. Eu estou, em França, perto da posição de Jean-Luc Mélenchon [dirigente da Front de Gauche, que junta dissidentes dos socialistas e comunistas], e ele compreendeu que Marine Le Pen teve a capacidade de escutar as pessoas. Como sabe, hoje em dia, a classe operária vota maioritariamente na Marine Le Pen, e vota nela porque se sentiu completamente abandonada pelos socialistas. Os eleitores socialistas são a classe média e os imigrantes. Há um think tank, que se chama Terra Nova [próximo dos socialistas franceses], que afirma que a classe operária está perdida para os socialistas. É por isso que se concentram na classe média e nos imigrantes, que julgam que nunca votarão na Frente Nacional. Os governos socialistas ofereceram a classe operária a Marine Le Pen. Um problema fundamental é que a classe operária é também aqueles que são os perdedores do processo de globalização. E os socialistas interessam-se mais pela classe média, que ganhou com esse projeto. Jean-Luc Mélenchon é muito consciente dessa necessidade de reganhar o voto popular. Ele apresentou-se nas anteriores eleições presidenciais e não quer dar de bandeja o voto operário à extrema- -direita, mas é uma tarefa muito difícil, até porque ela tem uma grande vantagem: está implantada. Quando uma força política já transformou a consciência das pessoas e ganhou a sua confiança, torna-se muito difícil construir uma alternativa populista de esquerda onde a direita ocupou esse terreno. Mas, por outro lado, estou completamente convencida de que só é possível lutar contra o crescimento da Frente Nacional com um movimento populista de esquerda.
Há capitalismo com democracia liberal, há capitalismo com ditadura, mas pode haver uma verdadeira democracia igualitária com capitalismo?
A verdadeira democracia. Eu interesso–me, como filósofa, melhor dizendo como teórica política, porque aqueles que fazem filosofia colocam-se normalmente no papel de dizer como o mundo deve funcionar de uma forma ideal, e eu contraponho sempre: “De acordo, como se deve chegar aí e com quem?” E aí, esses filósofos políticos respondem-me – falo-lhe de experiência própria -, “isso não é o nosso problema, isso é o problema dos políticos; nós, os filósofos, dizemos como o mundo deve ser”. No meu caso, isso não me interessa. Inscrevo-me na linha de Maquiavel, que falava da “verità effettuale della cosa” – como as coisas são -, e tento compreender como o mundo é hoje para o transformar. Pode-se lutar contra o neoliberalismo. Os país do sul da Europa sofreram muito com o crescimento enorme da distância entre ricos e pobres que está expresso nos trabalhos de Thomas Piketty. Hoje, se compararmos a situação da Europa com aquela que havia há 30 anos, em que havia uma hegemonia social-democrata, deu-se um gigantesco passo atrás. As desigualdades são maiores que há 30 anos. É preciso lutar contra as políticas neoliberais. Se for possível conseguir isso, tal não significa o fim do capitalismo. Até porque o capitalismo não existe: há formas diferentes de capitalismo, com formas de regulação específica. A ideia do populismo de esquerda é recuperar a democracia. Vivemos em sociedades pós-democráticas: temos eleições mas, de facto, as decisões importantes não são tomadas nos parlamentos. Em grande parte, essas decisões são tomadas fora dos países: grandes bancos e empresas transnacionais que impõem as suas políticas. É preciso lutar contra isso. Conseguindo esse objetivo, não viveremos num mundo ideal.
O problema não existe também nos limites do pensável? Se estabelecemos que o capitalismo será o horizonte eterno da humanidade, isso não condiciona o que podemos mudar?
É por isso que eu digo que o capitalismo não existe. Existem formas de capitalismo. Por isso, quando se fala na superação do capitalismo, eu não sei o que isso quer dizer. Aquilo que conhecemos é o capitalismo neoliberal – podemos imaginar combater isso, mas lutar contra “o” capitalismo, o que é isso?
Para si, pelos vistos, não existe um modo de produção capitalista com características comuns, como defendido por Marx.
Não, isso eu aceito. Eu não acredito é numa revolução que destrua tudo e coloque tudo numa situação como se fosse tudo novo e partíssemos do zero. É por isso que eu defendo, retomando a conceção de Gramsci, aquilo que ele defende ser a guerra de posições. É esta a posição realista. Chamo ao que defendo reformismo radical. Não acredito na oposição entre reforma e revolução: há uma solução intermédia. Até porque, na revolução, é preciso saber com quem e para quê, e já vimos os efeitos dela. Há ainda alguns teóricos, a quem eu eu chamo radicais chiques, que continuam a falar de revolução, mas não explicando como. Para mim, isso não é sério.
Escreveu com o seu companheiro, Ernesto Laclau, o livro “Hegemonia e Estratégia Socialista”, onde era feita a crítica à esquerda comunista e social- -democrata. Para o ano faz 100 anos a revolução bolchevique e, em comparação com essa época, quase não há comunistas e social-democratas. Mudaria o quê nesse livro?
Essa foi uma pergunta que me fizeram muitas vezes. A situação é pior neste momento. É irónico, porque nós criticávamos a social-democracia por não ser suficientemente radical na luta pela igualdade. Hoje, passadas três décadas, somos obrigados a defender a social-democracia. Nós éramos muito críticos do Estado-providência, mas hoje estamos, perante a ofensiva neoliberal, numa situação de dizer que, em primeiro lugar, é preciso recuperar muitas das coisas que se perderam. O nosso projeto, nesse livro, era radicalizar a social-democracia para uma democracia radical e plural. Mas partíamos de uma coisa já construída. Hoje é preciso recuperar o que tínhamos para depois o radicalizar. Mas a correlação de forças é muito pouco favorável. Considerávamos que a luta socialista herdeira tanto do modelo social social-democrata como do soviético estava demasiado limitada e exclusivamente centrada nas reivindicações da classe operária, e que era preciso incorporar nessa luta a agenda feminista, gay, antirracista, etc. Evidentemente, mantenho esse projeto, até porque, com o neoliberalismo, assiste-se a novas formas de dominação que não são limitadas à classe operária: por exemplo, a precarização e pauperização da classe média. Há, portanto, mais lutas para integrar.