O que se faz quando se tem carta-branca? Se do outro lado desta dúvida estiver Mário Laginha faz-se uma viagem. Até África. O pianista criou temas inéditos, inspirado na influência africana que descobriu ainda na adolescência, mas que poucas vezes tinha expressado abertamente no seu trabalho. Um elogio à universalidade musical, que reunirá, amanhã, 6 de outubro, no palco do Grande Auditório do CCB, dois portugueses, um brasileiro, um cabo-verdiano, um inglês e um norueguês.
O que mais salta à vista nesta Carta Branca é uma homenagem à universalidade da música.
Dito assim fica com um certo ar de grande causa, e a música não precisa de mim para ser universal, mas a verdade é que uma das minhas características – que acho que não está sequer escondida – é que gosto de muitos tipos de música. E sempre que posso gosto de fazer experiência, de me envolver com músicos que admiro. Quando eles alinham. (risos) O jazz é a área com a qual as pessoas mais me identificam mas também tenho feito outras coisas e mesmo dentro do jazz tenho tocado com pessoas de estilos muito diferentes. Além disto, gosto muito de tocar aquilo que escrevo e tenho escrito muita música, tenho tocado com orquestras e tenho tocado muito clássico, principalmente com o Pedro Burmester. Mas com a Maria João, por exemplo, fizemos inúmeros discos com influências do Brasil à Índia. Foram tudo coisas que fui fazendo. Nos trabalhos que fui fazendo, nos discos que fui gravando, acho que a música africana, ainda que não de uma forma explícita, foi sempre uma influência.
De onde veio essa influência?
Não sei explicar, mas lembro-me de ser adolescente e ter ouvido alguma coisa de uma tribo que me despertou a atenção. Lembro-me que eram umas recolhas de uma editora francesa. E depois lembro-me de ir muito à Buchholz que tinha, na cave, uma discoteca com uma zona de música étnica onde ia lá comprar discos de música africana. A audição de música africana acabou por ser uma influência relativamente importante para mim.
Mas que se manteve sempre no subtexto?
Exatamente. Acho que só quem conhece bem determinadas coisas é que poderá reconhecer, no meu trabalho, que eu as ouvi, mas são sempre coisas pouco óbvias. Quer dizer, com a Maria João fiz muita música que mostrava, de uma forma já mais óbvia, que gosto de música africana.
É justamente a afirmação desse gosto que está no epicentro deste espetáculo?
Sim. Antes de mais tenho de dizer que esta Carta Branca é uma coisa muito feliz, porque me permite sentir que têm confiança em mim… Prova disso é que apresentei duas sugestões para este espetáculo e foram ambas bem recebidas. Esta foi a primeira ideia, da qual o CCB gostou logo. Queria juntar estes músicos que conheço bem, e com os quais tenho tocado ao longo dos anos, com o Tcheka que também vou conhecendo cada vez melhor porque tenho feito coisas com ele com regularidade. E imaginei como seria escrever música assumidamente com influência africana.
E porquê estes músicos e não outros?
Porque são músicos que gostam deste tipo de desafios. Não é só serem bons, porque há imensos músicos bons, mas estes são fantásticos. E dizem-me imenso porque, além de bons, têm uma identidade muito forte que trazem para a música. E portanto atraía-me muito a ideia de escrever música para esta formação. A música foi escrita, da primeira à última nota, para esta formação e para este espetáculo.
Isso quer dizer que este não foi um processo de dois ou três dias. Quanto tempo levou a preparar este espetáculo?
Na minha cabeça vão aparecendo ideias e escrevo dois ou três compassos, para não me esquecer da ideia. Trabalho muito assim. Quando sei que tenho de escrever música para um projeto, vou guardando ideias ao longo dos meses. Neste caso, além disto, em julho fui com o Tcheka tocar ao Festival de Marciac, em França, e nessa altura já tinha dois ou três temas escritos a pensar neste grupo e, ali, tocámos um deles. Depois fui de férias e, a 1 de setembro, quando cheguei, comecei a trabalhar a sério nisto. Demorei 22 dias a escrever as músicas deste espetáculo.
Apesar de este ser um espetáculo movido pela tal influência africana, os músicos que vão estar em palco representam cinco países, mas apenas Tcheka é africano.
Só reparei nisso mais tarde, não os tive a escolher pelos países, mas porque são músicos muito importantes para mim. Além do Tcheka, que é cabo-verdiano; um é brasileiro, nasceu em Niterói, mas já vive cá há muitos anos, o Alexandre Frazão, com o qual toco bateria; eu e o Bernardo [Moreira, contrabaixo] somos portugueses; o Julian Argüelles [saxofone] é inglês; e o Helge Norbakken [percussão] é norueguês. Claro que poderia dizer – mas as pessoas vão ter de testemunhar para perceberem o quão verdade isto é – que este percussionista norueguês sempre teve um fascínio enorme, se calhar ainda maior do que o meu pela música africana. O Helge vai regularmente a África fazer cursos de percussão. É um percussionista fantástico, que estudou em escolas europeias, mas também junto de grupos de percussionistas africanos. Ainda agora, ele está a ficar em minha casa, e no outro dia estava a comprar bilhetes de avião para ir estudar para a Gâmbia.
Ornette Coleman terá um dia dito a Keith Jarrett que, pela forma que este tinha de tocar, teria de ser negro. Esta ideia, de certa forma, ainda prevalece. Daí tendermos a achar que um norueguês dificilmente poderia ser um percussionista com forte influência africana na sua música.
Do ponto de vista como encaro as pessoas não existe cor. Isso passa-me completamente ao lado. Nada tem carga de qualidade associada a isso, não consigo olhar para alguém e pensar que é melhor ou pior que eu. Não me faz sentido. E digo isto em relação à cor da pele, mas também a outros aspetos. Agora, é diferente se falarmos de características. Os povos são diferentes e isso é uma riqueza maravilhosa. A cultura africana tem a percussão tão presente desde que as pessoas nascem que isso tem de ter importância no modo como eles tocam percussão. São esmagadores, incríveis. E mais facilmente têm uma apetência rítmica do que na Europa, onde isso não é desenvolvido e alimentado desde que nascemos.
Outro aspeto que refere na apresentação deste espetáculo é que tem uma relação paradoxal com a ideia de fusão. Mas esta Carta Branca não é essencialmente uma ode à fusão?
Com o advento da internet, e quanto mais ela está presente na sociedade e em tudo aquilo que acontece, mais as fronteiras se esbatem. Eu, para ouvir música africana quando era adolescente – e sei que já passou algum tempo (risos) – apanhava um autocarro de minha casa em Belém para a Buchholz que demorava uma hora. Quando lá chegava descia as escadas, procurava uns discos, voltava para casa e punha o disco que tinha comprado no gira-discos. O processo até ouvir uma música era longo. Agora, qualquer pessoa, em qualquer canto do mundo, pode pesquisar, por exemplo, como é a música do Mali. Começou a ser tudo muito fácil. E, por isto, muitas vezes se faz uma fusão à superfície. Ou seja, junta-se um músico daqui, um músico dali, e já está. Isso a mim não me diz nada. Se achar que a música não foi trabalhada, que há facilitismo, não me diz nada. E não estou com isto a dizer que a música tem de ser complexa. Acho é que uma pessoa tem de entrar suficientemente fundo na música, mas também acho que se pode fazer isto com música pop só com três acordes. Depois, é preciso tentar descobrir a maneira certa de juntar as pessoas. Senão é só fusão por fusão. E isso, sim, irrita-me.
Portanto, não é a fusão em si que o desagrada, mas a forma como é feita.
Sim. Acho que se faz muita fusão um bocado como se põe uma roupa fashion qualquer, mas na verdade não se cuidou de mais nada. Só que uma roupa fashion não torna uma pessoa melhor. Não entendo esse tipo de fusão, esses grupos que são feitos sem irem ao fundo da música. No caso deste espetáculo acho que isso não acontece. Não só estive meses a pensar no modo como juntar estes músicos, como os conheço bem e, na realidade, quase todos tocaram com quase todos. Quando é assim as fusões dão-me muito prazer. Porque só acrescentam.