Dois homens num espaço sem saída. É este o desafio que nos coloca a peça e o texto de Joaquim Paulo Nogueira “Evaporação dos Pássaros”. A primeira versão foi escrita em 1988 de um só fôlego e rescrita em 2000. “Este texto nasceu em reação a um episódio que vi: um homem que tinha sido libertado de uma prisão, por fazer parte uma agremiação política, deixando um outro elemento desse grupo na prisão e completamente revoltado. Esse preso era um homem humilde que tinha sido recrutado e politizado por aquele que estava a ser libertado, e encontrava-se na situação de ter herdado as ideias do outro e a sua prisão”.
A peça passa-se num espaço confinado e aparentemente sem saída, em que se opõem um criado e um senhor. O primeiro é sucessivamente humilhado, e quando mais humilhado mais se agacha, aumentando o sadismo do senhor até a um ponto de não retorno.
Descrevem-se assim as personagens no texto: “Senhor, de origem urbana. Ressacado de uma festa, de uma euforia (uma revolução?), vai descobrindo a pouco e pouco que não tem poder para modificar a relação com o seu criado. A presença deste”;“ o criado é de origem rural. Vive há muito tempo com o senhor, tendo criado um espaço tranquilo e confortável onde se sente seguro. O seu objetivo principal e permanente é fugir para esse espaço. Tenta por isso despachar e cumprir ordens que lhe são dadas. Quando o senhor começa a ficar inquieto sente-se ameaçado, tentando fazer tudo para manter o jogo”.
Assim reza o texto que lança a peça, mas no espaço a “Evaporação dos Pássaros” vive de um conflito e de uma transformação: depois das humilhações, paulatinamente o criado, representado pelo ator Rui Ferreira, vai, primeiramente desconfiado e depois confiante, tornar-se o novo senhor e humilhador do seu patrão, representado Cláudio Ferreira. O materialização do texto é muito física e expressa-se, num espaço minimalista e escuro, pela transformação das palavras dos personagens que se revela na mudança da movimentação dos corpos. Há um tempo de humilhação a que se segue um tempo de dúvida e continua numa inversão dos papeis. “O senhor força o escravo a trabalhar, o escravo torna-se senhor da natureza. Ora ele só se tornou escravo do senhor, porque à primeira vista era escravo da natureza, ao se identificar com ela e se submeter às suas leis pela aceitação do instinto de conservação”, escreve Alexandre Kojéve, sobre o pensamento do filósofo Hegel sobre a “Dialética do Senhor e do Escravo”. É um pouco esta dinâmica que se pode ver em cena. O criado não vê outra solução se não ser criado até que a humilhação se torna tão gritante que ao ser-lhe dada a possibilidade de trocar de papeis ele acaba por o fazer. Ao fazer a situação fica igual. Estamos no campo daquela anedota que garante que o capitalismo é a exploração do homem pelo homem e o socialismo é exatamente o seu contrário. A consciência disso leva os personagens a acordarem voltar ao ponto de partida. Embora pareçam regressar ao início a experiência deixou marcas, e a relação de facto alterou-se.
Rui Ferreira, que representa um submisso criado, confessa que esperava que a peça fosse difícil de entender, mas que a reação no ensaio público mostrou que as pessoas se identificavam com esta dinâmica. “Todos nós vivemos processos deste tipo: numa relação, num trabalho e em outras situações”, garante. E os espetadores tendem a identificar-se com quem? “Com o criado”, considera Rui. Joaquim Paulo Nogueira dá densidade a esta escolha: “O tempo de humilhação faz sobretudo as pessoas não gostarem do senhor, não se identificam com criado, mas sentem como sua a vingança que ele protagoniza”.
Até 23 de outubro os lisboetas podem ver esta peça, do Coletivo Prisma, com encenação e texto de Joaquim Paulo Nogueira e representação de Cláudio Henriques e Rui Ferreira.