A vida de artista é assim mesmo: ainda ontem à noite Yann Tiersen estava a atuar em Marselha e hoje, às 18h, já estava a subir ao palco do Coliseu de Lisboa para mais um concerto. Trouxe consigo o seu último disco, editado no fim de setembro, “EUSA”, um trabalho que é uma homenagem à ilha onde vive, Ouessant, na Bretanha – ‘Eusa’ em Bretão. Aliás, mais do que uma homenagem: uma espécie de cartografia sonora da terra que elegeu como casa há cerca de 15 anos.
Este é também o seu primeiro disco exclusivamente ao piano. Tratam-se de dez composições a que Tiersen deu o nome de localidades da ilha intercaladas por recolhas sonoras ambientais de Ouessant. Não foi de estranhar que o palco do Coliseu dos Recreios estivesse despido, sem grandes aparatos cénicos: um piano de cauda (essencial, pois então); um gravador fita para trazer até Lisboa a memória sensorial da terra do músico; um candelabro de luz laranja, e mais dois ou três focos de luz suave. Na boca do palco, duas pianolas para um segundo momento do concerto.
Vestido de preto, para não se destacar da tonalidade, eis Yann Tiersen. Um dos grandes talentos da música autoral e instrumental francesa, multi-intrumentista, que muita gente aprendeu a adorar por conta da banda sonora do filme “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”, que Jean-Pierre Jeunet realizou há 15 anos. Essa parte ficaria para mais tarde. Primeiro, a novidade que Tiersen tinha para mostrar aos fãs portugueses que lotaram a nobre sala lisboeta a um sábado à tarde.
Pela dedicação que Tiersen tem pela sua terra, percebe-se o conforto que quis criar. Educado, perguntou à plateia se poderia carregar no “play”. “É tudo gravado. Isto até é um piano falso”, disse a brincar, no arranque do fim de tarde. Seria a última coisa que diria, para lá dos habituais e educados agradecimentos às palmas. Fita a rolar e ouve-se o aparente uivo de uma coruja, antes da primeira vez que vai às teclas. Fecha os olhos e deixa-se ir na abertura “Hent I” – traduzindo de bretão para português: “caminho”. Via aberta para o desfile de temas que Tiersen escreveu para tentar espelhar as sensações de um homem numa ilha: “Pern”, “Porz Goret”, “Penn Ar Roch”, “Enez Nein” representadas com latitudes e longitudes sónicas que pretendem descrever a tranquilidade que o compositor aqui encontra. Umas mais sonhadoras e esperançosas, algumas valsas mais ou menos aceleradas que encontram o canto dos pássaros; outras mais circunspectas, graves e dramáticas que acabam por ser pintadas com o barulho de ondas.
Assim foi durante perto de uma hora. Tiersen deu a conhecer a sua mais recente obra antes de puxar pela memória do público e recordar alguns dos seus temas mais clássicos. Levantou-se, pegou num violino que até então estava escondido, abeirando-se e fazendo-o chorar ao microfone. Ajoelhou-se à beira do palco, em dois aparentes pianos de brincar – com um som que faziam parecer que Yann Tiersen é também um mestre na nobre arte de tocar campainhas – e mostrou a sua faceta um pouco mais avant-garde.
Ali esteve mais meia hora a oferecer recordações, entre as quais a muito esperada e inevitável “La Valse d'Amelie”, interpretada em escaleta e ao piano. Sempre sorridente e bem-disposto, saiu e voltou a entrar para um único encore que serviu para terminar com tonalidades mais vanguardistas a carregar forte nas teclas do piano e no arco do violino.