O embaixador Francisco Seixas da Costa recebe-nos, de manhã, em sua casa. Está bem-disposto e de fato e gravata. Tem um almoço a seguir. A janela mostra uma buganvília no jardim. Na sala de estar há arte variada e vários mapas – os ossos do ofício de um diplomata com quase quatro décadas de carreira.
Poucos sabem, mas foi adjunto da Junta de Salvação Nacional no 25 de Abril de 74. Candidatou-se ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, para o corpo diplomático, «por puro diletantismo». O Professor Aníbal Cavaco Silva, acabado de regressar de Londres e ainda bem antes de saltar para o protagonismo político, estava no júri do concurso do MNE. «Foi o primeiro ano em que entraram mulheres», relembra, com algum orgulho.
Volvidos trinta e oito anos de serviço público, o embaixador gosta de escrever, essencialmente sobre política doméstica e internacional, mas de «forma imediatista».
«Eu pratico a liberdade, defini um registo de permanente distanciamento crítico», assume, recusando qualquer subordinação mais tática. «Dá-me imenso gozo», sorri enquanto cruza a perna, sentado no sofá cor de marfim.
É uma participação diferente daquela que fazia quando tinha responsabilidades institucionais – «um ganho de liberdade» – em que diz o que pensa e não esconde afinidades.
Foi Secretário de Estados dos Assuntos Europeus de António Guterres, um dos governos mais centristas da história do Partido Socialista nesta III República. Talvez tenha sido isso que, a princípio, o fez suspeitar da ‘geringonça’.
«Hoje tenho melhor impressão da solução de Governo do que na altura quando ela foi criada», conta-nos.
Inicialmente, temia que «a ruptura com uma prática do Partido Socialista consistente ao longo dos anos fosse um risco pelas repercussões no plano externo, em particular, europeu». Preocupavam-no as consequências a nível identitário do partido e o ponto de vista internacional da preservação de equilíbrios «essenciais à preservação dos interesses do país». E a preferência de alguma esquerda por uma democracia participativa não vai contra esse nível identitários?, lançamos. «A democracia representativa está bem no PS. Eu não gosto muito da participativa na sua forma populista por medo que desregre o sistema político», adverte, dando o exemplo de ser «totalmente contra os referendos». «Quando foi o referendo do aborto dei boleia à minha mulher e fiquei à porta», revela.
Para Seixas da Costa, há diferenças nas estratégias de sobrevivência das três forças políticas que constituem a solução de Governo, o Partido Comunista, o Bloco de Esquerda e o PS em governo minoritário. «A capacidade de sucesso de cada uma não é o somatório de todas elas», aponta. «Mas esta solução está a sair melhor que a encomenda».
Perguntamos se melhor que o Governo anterior e a resposta sai pronta. «Não há nada pior que o Governo anterior».
O diplomata declara-se «profundamente chocado» com a atitude do governo de Pedro Passos Coelho no plano europeu. «A orientação económica, a insensibilidade social, a incapacidade de medir os interesses do país…», lamenta. «Nunca encontrei um Governo com uma falta de distância às imposições externas tão evidente» diz, lembrando que ele próprio, como embaixador durante esse período, defendeu as obrigações que o Governo punha em cima da mesa. «À distância, posso dizer que a postura em relação à Europa foi errada e teve um custo elevado para o país: clivagens sociais, clivagens políticas tão densas que deu nesta solução de Governo».
Perguntamos sobre o facto de também na restante Europa os tradicionais arcos-de-governação se terem visto desgastados. O entrevistado não descarta o fenómeno e analisa-o no Portugal de hoje. «É verdade que o centro-direita e o centro-esquerda ficaram demasiado presos a uma leitura austeritária que deu origem à ascensão de forças mais à esquerda. Apesar de tudo, o PS resistiu relativamente bem». Seixas da Costa não vê a ‘geringonça’ como um ceder a essa tentação. «A solução atual pode recuperar algumas franjas que o PS poderia perder para a esquerda. Em coligações ou soluções de governo com apoio parlamentar, os partidos mais pequenos acabam sempre por sofrer algum desgaste relativamente a quem titula o poder. As pessoas quando votam, votam no Partido Socialista porque é ele que está a titular esta política», esclarece, sem deixar de salientar a importância de não colocar em causa os compromissos europeus.
Aquilo em que diverge consideravelmente dos partidos da direita passa pela maneira como lidar com esses compromissos europeus. Para o embaixador, é fundamental «discutir no quadro europeu a possibilidade de flexibilizar determinadas medidas e objetivos». E o PSD não fez isso mesmo? «Pontualmente, mas não só pelo Governo. A própria Troika deu conta. É comparar o memorando de entendimento com aquilo que de facto foi feito, mesmo que a filosofia do modelo nunca tenha sido posta em causa», devolve a bola. E a Alemanha terá responsabilidades nisso? «Há um problema democrático porque a opinião pública desses países não dá margem para que os líderes mudem de posição no quadro europeu, embora os líderes também não tenham procurado fazer uma pedagogia nesse sentido».
O maior problema da Europa passa pelo esquecimento da «diversidade europeia». A solução está no federalismo? Seixas da Costa relembra o percurso da sua opinião sobre o tema. «Era a solução; neste momento já não há condições». O diplomata começou por ser um soberanista, como ditava a escola mais antiga dos Negócios Estrangeiros, sendo depois lentamente conquistado quando carregava a pasta dos Assuntos Europeus. Mas, «nessa altura», havia uma compatibilização diferente dentro da Europa e «ao mesmo tempo» mecanismos de solidariedade intraeuropeia.
O objetivo do modelo federal terá colapsado com o alargamento aos países de Leste. «O Tratado de Lisboa e o tratado constitucional foram a pedra na tumba do modelo federal. Não estou a ver um país como a Alemanha em condições para impor à sua opinião pública uma instituição europeia com representação equitativa da Alemanha e de Malta…», acrescenta.
Segundo Seixas da Costa, o Tratado de Lisboa garantiu que quem já mandava continuasse a mandar. «O peso populacional passou a reforçar o poder e aí a Alemanha e a França passam a ganhar».
Sobre a crescente supremacia germânica, o embaixador reconhece que «países como a França e a Itália falharam». Será uma falta de líderes? Para si, não. «Às vezes, tem mais a ver com as instituições que com os líderes».
Perguntamos se, após horas de comentário televisivo sobre a campanha e consequente vitória de António Guterres na ONU, não está cansado de falar sobre o assunto. «Nada cansado, falamos do que quiser!», afirma, permanecendo visivelmente orgulhoso do feito do compatriota.
A excecionalidade da seleção do seu ex-primeiro-ministro para secretário-geral das Nações Unidas vê-se no modo como os membros permanentes do Conselho de Segurança «ficaram um pouco de mãos atadas com a transparência do método». «Alguns deles terão ficado até surpreendidos pelo resultado não ter sido um empate»; um cenário que daria força a uma candidatura de última hora como a de Kristalina Georgieva… «Uma senhora e de Leste viria salvar o dia. Isso não ter acontecido deve-se a uma pessoa chamada António Guterres», diz.
Sobre as dificuldades que venceu na eleição prolongarem-se pelos cinco anos de mandato, Seixas é cauteloso. «Não me parece, mas há que ter em conta que a situação internacional está a evoluir muito rapidamente para uma tensão difícil de reconstruir». O diplomata reconhece que o Conselho de Segurança estará bloqueado por tensões entre Leste e Oeste, isto é, entre a Federação Russa e os Estados Unidos da América.
«Resolver o novelo de desconfianças vai ser difícil. Se olharmos para a história da Guerra Fria, os secretários-gerais da ONU não tiveram a mais leve importância». Mas estamos em Guerra Fria outra vez?, inquirimos. O embaixador aproxima-se da mesinha que nos ladeia, distanciando-se das costas do sofá. «Há um crescendo de tensão com fatores de risco muito elevados», introduz. «Pela primeira vez, estamos num momento assimétrico em termos de processo de decisão: o sistema de segurança e defesa ocidental tem checks and balances, tem parlamentos, mecanismos de controlo muito fortes. Na Rússia, não se vive isso; é um modelo polarizado num homem. Um modelo menos democrático que dentro da ex-União Soviética, onde apesar de tudo, o peso da máquina da URSS era mais colegial do que a potencial decisão de Putin».
Acerca do papel que Guterres poderá executar como secretário-geral perante este cenário, Seixas da Costa resume: «Pode ter a delegação das grandes potências, mas não para negociar entre a Rússia e os EUA. Os maiores poderes serão a autoridade e a diplomacia pública para chamar à atenção a determinadas problemáticas, como bem fez no Alto Comissariado para os Refugiados».
Como fica a ONU depois da transparência que levou Guterres ao triunfo? «Agora é muito difícil voltar atrás», afirma. Se antes, a Assembleia Geral fazia «de carimbo das decisões do Conselho», agora, a Assembleia ganhou «visibilidade». Transformou-se «num mecanismo de mudança de forças, o que é muito interessante», avalia também.
Mas a realpolitik não acabou. Será necessária, por exemplo, para o processo de seleção de equipa de Guterres. «Será preciso garantir um equilíbrio de poderes e representação regional. A ONU é isso mesmo e será mais um grande desafio para Guterres. Há, por vezes, a fragilidade de sacrificar a qualidade e privilegiar a diversidade», relata, sobre a sua experiência pessoal nas Nações Unidas, em que esteve entre 2001 e 2002.
«Claro que eu nunca diria isto assim se quisesse regressar às Nações Unidas», sorri novamente e regressa às costas do sofá. A liberdade da reforma sabe-lhe bem.