João Botelho deve muito do seu cinema a Manoel de Oliveira. E insiste em devolver-lhe essa homenagem num documentário confessional que também revela alguns segredos do cineasta que morreu em abril de 2015. “Sabiam que via telenovelas brasileiras nos intervalos da rodagem? Era para não pensar em absolutamente nada”, recorda Botelho.
Mas o realizador vai mais longe ao incluir no rigoroso e didático “O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu”, uma curta-metragem servida por um guião antigo do mestre Oliveira, mas que este não terá ousado filmar por trilhar caminhos antigos e encontros furtivos, do tempo em que era um “valdevinos”, como apelida Botelho, numa narrativa originalmente intitulada “Prostituição ou a Mulher Que Passa”, uma história supostamente transmitida por uma mulher da vida.
Entretanto, no período até hoje e desde a conclusão deste projeto, João Botelho já calcorreou a China para dar corpo e alma a um documentário e um filme sobre a obra audaz de Fernão Mendes Pinto, “Peregrinação”: um projeto que vai ser apresentado em breve na 1.a edição do Festival Internacional de Cinema de Macau, mas para o qual o português espera ainda arranjar parte da verba que falta e assim concluir o que apelidou de “blockbuster português”. Afinal de contas, foram 37 dias de “grande violência” a filmar e 17 viagens de avião de um lado para o outro. Esperemos que possa contar com a ajuda prometida de Josie Ho, filha do magnata Stanley Ho e atriz que participa numa banda rock, “ovelha negra da família”.
A ideia de “O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu” parece aproximar-se um pouco da sua própria ideia de cinema, não lhe parece?
Para mim, a ideia é que é o cinema que interessa, não os filmes. Foi ele que me ensinou isso. Eu tinha uma dívida muito grande para com o Manoel.
Por isso fez este filme?
Também. Foi um pouco por ele que fiquei viciado em cinema, mas como cinéfilo. Até porque nunca pensei em fazer filmes. De resto, fui muito tarde para a Escola de Cinema – já era engenheiro mecânico. Antes estive a estudar em Coimbra, mas como era galdério saía todas as noites para ir ver filmes.
Também andei por lá, em Direito, e vi muitos filmes no Teatro Gil Vicente… Mas como foi o seu percurso até chegar ao cinema?
Não tinha dinheiro e no verão quis sair do país. Acabei por ir trabalhar para umas fábricas em Inglaterra, restaurantes da Suécia… E acabei por ficar viciado em cinema, como se fosse tabaco ou café. Via seis filmes por dia na Cinemateca, em Paris. Mas era por maluqueira, por vício. Gastava lá o dinheirinho todo. Quando fui para o Porto, foi a mesma coisa, na Póvoa, em Espinho… Entretanto aconteceu o 25 de Abril e mudou tudo. Mudou a vida das pessoas. Mas eu cheguei tarde ao cinema. E a passagem para fazer filmes foi com o Oliveira. Conheci-o na Escola de Cinema, estava ele a fazer o “Amor de Perdição” e eu estava a fazer uma revista de cinema, chamada “M”. E quisemos dedicar o primeiro número ao Manoel de Oliveira. Entretanto começámos a falar todas as noites, durante meses. Eram conversas à mesa do café, em que ele desenhava no guardanapo os planos que estava a montar.
Foi com “Amor de Perdição” que Manoel de Oliveira se tornou conhecido lá fora, não foi?
Sim, mas também foi um dos cineastas portugueses que mais sofreram. Eu nunca tive uma interrupção de 12 anos, como ele teve entre o primeiro e o segundo filme. Nem tive de esperar 15 anos entre o segundo e o terceiro. Ele chegou aos 70 anos com meia dúzia de filmes feitos. Mas depois dos 70 fez um filme por ano. Mas, na verdade, foi o “Amor de Perdição” que mudou tudo. Era de tal maneira inovador e com uma atitude de adaptar à letra a literatura que em Portugal foi inteiramente rejeitado. Mas depois foi considerado uma obra-prima quando obteve sucesso fora do país. Foi imposto de fora para dentro. Entretanto fez o “Francisca” e acabou por criar uma ideia de cinema nova.
Qual foi, no seu entender, o maior ensinamento do Manoel de Oliveira?
Ele ensinou-me que o cinema é o modo de filmar. Não é o que se passa quando se passa, mas como se filma. O cinema é o modo de filmar as histórias. Cada um faz à sua maneira. E ensinou-me também a história da economia. É que nós estamos numa sociedade artesanal, não estamos na América. O que ele fez foi ensinar-me a melhor maneira de utilizar esses meios artesanais. “Filme com os meios que tem à mão”, dizia-me. E há aquela frase maravilhosa que cito sempre: “Se não tem dinheiro para filmar a carruagem, filme a roda. Mas filme-a bem!” Isto é maravilhoso! Depois ensinou-me outra coisa: a independência, a liberdade. Dizia-me: “Filme só aquilo em que acredita, não se deixe influenciar por ninguém.” A ideia é aprender, mas não nos deixarmos influenciar por gostos duvidosos. E também me ensinou a dizer que “o cinema é uma mentira”.
Acredita nisso?
O cinema tem uma tendência enorme de parecer que é a vida. As pessoas acreditam, mesmo quando são filmes de super-heróis. Ele invejava a emoção que existe no teatro. O cinema tem uma tendência enorme de parecer que é a vida. Mas não é. As pessoas estão habituadas a entrar no ecrã. O Oliveira ensinou-me a não deixar ninguém entrar no ecrã. E a dizer que é tudo mentira. Por exemplo, ele nunca filmava campo contra campo; punha um ator a olhar para um lado e o outro para outro. Os atores falavam para quem estava na sala e não para eles próprios.
E isso era algo novo, não era?
Sim. O Straub andava lá perto, mas o Oliveira já o fazia antes dele. O Oliveira era um vanguardista, um inovador. Mesmo sem ter consciência disso. Ele não era um teórico. Mas sabia que o cinema era diferente dos filmes. Para ele, o cinema teve sempre uma reprodução diferente do real.
Entretanto, o nome de Manoel de Oliveira acabou por ficar mais conhecido que ele próprio…
Claro. Por exemplo, uma vez ganhou o Globo de Ouro com 200 e tal mil votos, mas apenas nove mil pessoas tinham visto o filme. Ou seja, conta mais o autor que a obra. Acho que é necessário lutar contra isso para que vejam mais a obra. As pessoas, normalmente, têm uma opinião sobre ele, mas são raros aqueles que viram os seus filmes. Mas para se ver o cinema do Oliveira temos de ter tempo disponível.
Acha que é agora que ele vai ser redescoberto?
Não vai ser descoberto nem redescoberto. Ele já foi suficientemente descoberto. Acho é que as gerações futuras têm de saber que ele existiu. Acho que este filme é um trabalho razoável para as escolas, para mostrar nos cineclubes.
No seguimento, aliás, de outros filmes que fez, com os quais andou em digressão pelo país.
Sim, é isso. Lembro-me de estar em sessões com 500 miúdos e haver momentos magníficos. Isto tem de ser aproveitado. Mas há outra coisa com que temos de lutar: o individualismo terrível das pessoas. Vemos hoje miúdos na sala de aula a fotografarem-se de costas para o quadro. Ou no Louvre diante da Mona Lisa a fotografarem-se a si próprios.
É a valorização do eu.
Não é a estátua e eu, mas sim eu e a estátua! Eu fui lá, eu estive lá! Os miúdos, hoje, são capazes de estar no iPhone, de costas, a falar uns com os outros. No cinema passa-se o mesmo. As pessoas comem e bebem, veem o filme, mas não falam sobre ele. Eu até gosto de ir dançar às discotecas, mas vejo que os miúdos vão lá para o barulho e não trocam palavras. Não discutem ideias. Esta pode ser uma generalização parva, pois há miúdos excelentes, brilhantes. Mas é uma minoria. É como os Estados Unidos: são o país mais rico do mundo, mas não sabem nada sobre a humanidade.
Poderá ainda o cinema de Manoel de Oliveira chegar a estas pessoas de que fala?
Pode, pode. Claro. Pode mostrar coisas diferentes. É como “Os Maias”, o filme que fiz há dois anos. O Eça [de Queirós] demorou sete anos a escrever o livro. E quando saiu as pessoas odiaram, teve críticas a desfazê-lo. Era um retrato tão forte que ninguém queria rever-se nele. Cento e cinquenta anos depois, ainda se lê.
Acho que continua a ser obrigatório na escola.
Sim, é obrigatório. Não pretendo que os filmes resistam 150 anos, mas 30 ou 20. E acho que o Oliveira vai ser interessante durante anos e anos. É preciso é ter tempo, algo que hoje não existe. Ter tempo para ver um filme de quatro horas. Ou de sete, como o “O Sapato de Cetim”(1985), que tem planos de cinco e dez minutos. A ideia é poder olhar para aquele filme como quem vê pintura ou como se ouve música. Mas hoje não há quem fique mais do que dois segundos diante de um quatro do Cézanne. Há sempre outro e mais outro para ver. Há um canibalismo das ideias e das imagens.
Mesmo assim, numa altura em que o Manoel de Oliveira filmava com maior regularidade, nunca perdeu o seu estilo pessoal.
Claro. Foi ele quem me disse: “Nunca ceda, nunca faça para ninguém. Faça o melhor que sabe.” Ele teve sempre esta atitude, só fazia aquilo em que acreditava.
Pelos vistos deixou-lhe vários conselhos…
Muitos. Outro, muito engraçado: “Nunca se prostitua. A não ser para arranjar dinheiro para fazer um filme. Mas depois, quando filma, nunca!” Isto é maravilhoso (risos). Eu metia-me com ele: “Então o Manel foi ao Américo Tomás buscar dinheiro?” Ele fazia isso, ia com o Eurico de Melo de comboio. Mas dizia-me: “É para o filme, é para o filme!”
Como foi então a sensação que teve como discípulo ao filmar o mestre, como sucedeu em “Conversa Acabada”, o seu primeiro filme, em que contou com uma rara colaboração de Manoel de Oliveira enquanto ator?
Tem de ser sempre com respeito, com seriedade.
O que foi que lhe pediu?
Pedi-lhe para ser padre. Mas ele tinha um problema terrível, porque tinha uma aliança no dedo que não conseguia tirar. Então, nesse plano, está com a mão toda torcida para tapar a aliança (risos)… Mas foi um cameo interessante. Aliás, eu tinha dois pais espirituais no cinema. Um foi o Oliveira, que entrou no meu primeiro filme. O outro foi o António Reis. Mas foi interessante porque eu achei que o Oliveira era uma espécie de padre com pecado. Sempre.
De resto, a sua devoção era um pouco posta em causa pela comunidade do cinema…
Sim, aquela ideia do pecado e do arrependimento nem sempre era bem vista. E quem é mau é castigado. O mesmo acontece nesta curta-metragem. O que fiz foi mudar o título. O dele era “Prostituição ou a Mulher que Passa”, eu chamei-lhe “A Rapariga das Luvas”, porque é a rapariga que vai para o bordel porque o pai lhe queimava as mãos.
Imagino que este fosse um tema um pouco forte para ele…
Claro. Era casado, não podia estar com isso. E aquela era uma história de juventude, mas que escreveu mais tarde. Mas o Oliveira era um valdevinos, ia com os amigos para os cafés…
Numa entrevista que lhe fiz quando completou 99 anos admitia mesmo isso que está a contar…
Pois, ia para os bailes, para os bordéis… Enfim… De resto, foi uma senhora da vida quem lhe contou esta história. Disse ele, não sei se é verdade. E a história do lesbianismo também foi ele que a escreveu.
Sim, a sua mulher, D. Isabel, não iria achar graça…
Seguramente. Mas está lá tudo contado. Aliás, há uma entrevista ou uma história na “Cahiers du Cinéma” que conta precisamente essa história. Não estou a inventar nada.
Estava decidido que a curta “A Rapariga das Luvas” faria parte deste filme?
Sim. Mas não gosto de compartimentar as coisas. Para mim, um grande documentário é sempre ficção; e uma grande ficção tem sempre uma parte documental. Por exemplo, quando fiz “Um Adeus Português”, o primeiro filme sobre a guerra colonial, tinha cenários de papelão, feitos na Tobis, mas aprendia-se muito sobre o luto português. Algo em que as pessoas nunca queriam falar. Por acaso tive alguns casos chatos na minha vida: a minha mãe morreu quando eu tinha seis anos e o meu irmão era piloto de jato e morreu num acidente. E em casa nunca se falava nisso. Nunca. Era um silêncio absoluto. É um comportamento português. A dor cala-se. Por isso é que não somos cineastas da ação, mas da contemplação.
Então e o que foi o João Botelho contemplar para a China, no seu próximo projeto?
Fui contemplar e já acabei. Fiz um documentário para televisão sobre a transformação do Oriente. Chama-se “A Peregrinação: Os Ensaios”. Com esse projeto de documentário, já fui filmar os fundos todos para o filme “A Peregrinação”. Já filmei os rios, os mares, as paisagens do Oriente. Isto sem pessoas, o que foi muito difícil. Eles estão por todo o lado, são milhões. Isto para depois fazer as cenas de ação com estes fundos em chroma key [ecrã verde], porque não tenho dinheiro para fazer à americana.
Não é o Scorsese, que também por lá andou a fazer o filme sobre os jesuítas portugueses…
Pois, não tenho dinheiro para isso. Mas por acaso passei por onde ele andou.
No fundo, essa é a ideia da roda do Oliveira, não é?
É isso. Filmamos o melhor que podemos com o que temos. Por exemplo, há lá um plano que tem a máquina do tempo com 1500 anos.
Como começou esse projeto?
Foram os textos maravilhosos do Fernão Mendes Pinto, na “Peregrinação”, um livro com mais de mil páginas. O documentário são esses textos com imagens atuais. Sobre o Oriente.
Já terminou a rodagem?
Não, mas já tenho 10% do filme filmado, sítios por onde o Fernão Mendes Pinto terá passado. É o primeiro grande livro de viagens do mundo. E que toda a gente vai copiar a partir daí. Mas não é um filme sobre a saga heroica. Ele foi um aventureiro que relatou o que se passava na altura. Por exemplo, o Afonso de Albuquerque não é tratado como um conquistador, mas como um tipo selvagem, movido pela ganância, pelo lucro. Não é uma saga heroica, nunca assumimos isso. É sempre a glória e os sonetos do Camões nos “Lusíadas”. É um texto notável, mas é uma epopeia. Em Portugal, foi rejeitado na altura. O único que o aceitou foi Filipe de Espanha. Uma desconfiança que também existe hoje com o surgimento dos nacionalismos, dos islamitas, dos negros, do império.
Parece-me um grande projeto. Vai fazer um blockbuster, é isso?
Não (risos). Vai ter algumas passagens de ação. Mas dentro dos limites.
Quanto vai custar o filme?
Tenho dois milhões, vou precisar de três. Mas vamos lá ver… conheci a Josie Ho, a filha do Stanley Ho, que disse que me iria ajudar. Ela toca numa banda rock. Disse que era a ovelha negra da família. É muito gira. Vamos ver no que isto dá.