Dedicou 40 anos da sua vida ao jornalismo. Trocou a realidade pela ficção, mas acredita que, no fundo, continuou a fazer o que sempre fez: escrever. E escrever sobre aquilo que lhe suscita curiosidade, quase sempre o mundo e o ser humano. Em Lisboa para apresentar o seu mais recente livro, “História de Um Canalha”, uma obra que levou Julia Navarro a analisar o mundo da comunicação no séc.xxi.
Quando uma escritora tem um percurso associado a um estilo – neste caso, mais marcado ao nível dos romances históricos – e, de repente, apresenta um livro mais focado na atualidade, podemos subentender que há uma mensagem que deseja veicular?
É verdade que este livro é mais atual, porque tem lugar no séc.xxi, mas todos os meus outros romances têm lugar no séc. xx, portanto também os vejo como atuais. E acredito que este livro é coerente com tudo o que fiz anteriormente.
Mas o facto de Espanha atravessar os problemas que atravessa, em que há quase um ano não tem governo, não a faz querer ter um olhar mais atento sobre a atualidade?
Os problemas locais não me interessam, interessam-me os problemas globais, aqueles que todos os cidadãos enfrentam, independentemente do lugar onde nasceram ou vivem. Também por isto, todos os meus livros têm lugar em locais distintos. Este, por exemplo, decorre em Nova Iorque e Londres porque é um romance sobre o poder, e é nestas cidades que se tomam, todos os dias, decisões que afetam milhões de pessoas. Quero sempre contar histórias universais.
E o canalha é uma figura universal?
Basta ver as primeiras páginas dos jornais, em qualquer país do mundo, para logo descobrir alguns canalhas. E quando os canalhas têm muito poder é ainda pior, porque têm maior capacidade de fazer o mal. Os banqueiros do Lehman Brothers, que provocaram a crise económica de 2008, eram uns autênticos canalhas, e com uma enorme capacidade de fazer mal aos outros.
Mas este seu canalha, Thomas Spencer, não opera tanto ao nível da alta economia…
Mas também o faz. Este romance é sobretudo uma reflexão sobre o mundo da comunicação e de como, através da comunicação, se pode manipular a opinião pública. E é também uma reflexão sobre como as novas ferramentas mudaram os paradigmas da nossa sociedade e a nós, como indivíduos, e de como, atualmente, temos menos defesas face à manipulação da opinião pública. Esta manipulação pode destruir tudo, sobretudo agora que nem sabemos quem está por detrás de determinados movimentos e comentários nas redes sociais.
Porque sentiu necessidade de fazer esta reflexão agora, que, de resto, é uma reflexão que tem pontos de contacto com o seu passado, uma vez que foi jornalista durante muitos anos?
Nos meus livros abordo sempre os temas que me preocupam. O meu primeiro livro [”A Irmandade do Santo Sudário”] foi um thriller, o segundo [”A Bíblia de Barro] foi sobre a guerra do Iraque, uma guerra com a qual não concordava. Depois escrevi “Lo Sangre de Los Inocentes” [não editado em Portugal], uma reflexão sobre o fanatismo religioso de origem islâmica. “Diz-me Quem Sou” e “Dispara, Eu Já EstouMorto” são ambos reflexões sobre o século xx. Os meus livros estão cheios de coisas que eu própria estou a tentar entender. Esta “História de UmCanalha” é sobre o séc. xxi, mas sinto que em todo o meu percurso há um fio condutor de temas que tem a ver com o que me preocupa. Por isto digo que não considero que este livro seja mais atual que os anteriores, ainda que saiba que é essa a leitura que tem sido feita. Mas acho mesmo que a minha carreira literária tem coerência. Como já disse, acho que a única coisa que muda aqui é o facto de escrever na primeira pessoa.
E porque tomou essa decisão técnica?
Senti que a história que queria contar exigia uma linguagem diferente.
O que a fez trocar o jornalismo pela escrita de ficção foi uma necessidade de fuga da realidade?
Não. Foi um acaso. Fui jornalista quase 40 anos. Passei a minha vida a contar histórias. Quando era jornalista contava histórias reais, e agora conto histórias que são fruto da minha imaginação. Mas acho que a literatura e o jornalismo são caminhos paralelos. Talvez por isso nunca senti que estivesse a dar um salto no vazio quando comecei a escrever romances. Até porque, antes, já tinha publicado livros, mas de ensaio, sobretudo político. No fundo, não deixei de fazer o que sempre fiz: escrever. Só que agora a realidade não é mais a minha ferramenta. Mas lá está, mais uma vez: há sempre um fio condutor em tudo o que faço.
Sente que a ficção lhe dá a oportunidade de opinar a um nível que não é bem recebido pelo jornalismo?
A literatura permite tudo. Não temos de circunscrever-nos a nenhuma outra regra que não contar uma história e contá-la bem. E isto já não é pouco. Quando, por vezes, sou abordada por jovens que me perguntam o que é necessário para se ser um bom escritor, respondo sempre:ter algo para contar e contá-lo bem.
E é abordada por muitos jovens que lhe pedem conselhos?
Tenho muito contacto com os leitores, em Espanha e no resto do mundo. São sempre experiências muito interessantes.Gosto de saber o que pensam e como leram os meus livros. Em relação a este livro, por exemplo, já percebi que tem surpreendido os leitores, que o acham um romance duro, sobretudo ao nível da linguagem. Por vezes, nestes encontros, também me chateio com os leitores e digo-lhes que acho curioso que se sintam perturbados com as histórias deste executivo de WallStreet, mas que não tenham sentido o mesmo quando contei experiências com seres humanos em Auschwitz, noutro livro. Gostava que tivessem reagido com a mesma indignação.
E porque crê que isso não aconteceu?
Talvez porque as pessoas veem as questões históricas como algo do passado e, portanto, mais distante. Não quer dizer que não sejam sensíveis. Mas quando têm um personagem como este Thomas Spencer, que é como um espelho que lhes devolve um reflexo que não agrada, isso produz estas convulsões.
Talvez também porque todos nós ou temos algo de canalha, ou já tivemos de lidar com um canalha?
Todos temos lados mais obscuros. Não há ninguém que seja 100% bom. Nem os santos. Toda a gente tem os seus próprios fantasmas e demónios. Um livro como este é uma espécie de espelho e não nos agrada ver esse reflexo.
Demorou três anos a escrever este livro.O seu processo de escrita é sempre assim longo?
Sim. Primeiro há algo que me faz pensar que tenho de escrever sobre determinado assunto. Depois começo a pensar na história e nas personagens. Isto pode levar três ou quatro meses. Vou formando a história na cabeça e só começo a escrever quando já sei o que quero contar. Todo este processo é solitário, ninguém – nem o meu marido nem o meu editor – sabe sobre o que estou a escrever. É um processo muito lento. As personagens tornam-se parte da minha vida, há momentos em que não distingo entre a realidade e a ficção. Neste caso, viver com Thomas Spencer não foi fácil.
No início desta conversa referiu que o que a fascina são os temas universais. Isto significa que não compreende aqueles que falam de temas femininos na literatura?
Não acredito que exista literatura de mulheres e literatura de homens. Há boa ou má literatura. E o material que usamos é comum aos dois sexos, e é o ser humano e os seus grandes sentimentos, sejam eles quais forem. Dito isto, como jornalista e na minha vida pessoal, sou uma feminista militante e, em todos os aspetos da minha vida, a luta feminista faz parte do meu ADN. Enquanto existir nem que seja uma mulher numa situação de desigualdade, estarei na frente da batalha.
A própria literatura continua a ser um meio bastante desigual. Basta ver o olhar que se tem sobre uma mulher escritora que tenha bestsellers no currículo.
Odeio a palavra bestseller. Quando escrevemos um livro não sabemos se vai vender, não há uma fórmula que garanta que será um bestseller. Posto isto… Sim, é verdade que o olhar sobre a literatura escrita por mulheres continua a ser paternalista. Considera-se que é uma literatura inferior.
E livros como “As Cinquenta Sombras de Grey” reforçaram esse olhar?
Esse livros, a mim, não me interessam. Mas a verdade é que livros eróticos já os homens escreveram… porque achamos que os que são escritos por mulheres são piores? Porque vivemos numa sociedade patriarcal e machista. Nós, mulheres, temos de estar sempre a demonstrar que aquilo que fazemos, fazemos bem.