‘Não somos mercadoria’

Não sendo nós mercadoria, nem um mero número, um produto que se vende ou compra, acabamos por atuar como se consentíssemos ser tratados assim.

Esta mensagem, grafitada numa caixa de eletricidade, mais do que apelar à ação, como outras mensagens já neste espaço apresentadas, faz uma declaração, uma espécie de desabafo, ou queixa. E afirma perentoriamente que «Não somos mercadoria». A complementar esta afirmação está um balão que parece voar e querer libertar-se das amarras causadas pelos motivos que originam tal afirmação. Talvez como assinatura, por mera coincidência, ou por referência ao poema de Neruda, há, ainda, uns bigodes de gato, aquele animal que não aspira a ser algo diferente, que «quer ser só gato / e todo o gato é gato / do bigode ao rabo»…

Esta declaração, de que não somos mercadoria, parece ter uma conotação política, afirmando, por oposição à realidade que a origina, que o ser humano não é apenas mercadoria, ou seja, não é apenas aquilo que os políticos gostariam que fosse – objeto passivo, que aceita, sem contestar nem questionar, aquilo que lhe impõem: as medidas económicas, sociais, laborais ou outras que decidem e aplicam. Sobretudo as medidas laborais são frequentemente aplicadas sem ter em conta que há pessoas envolvidas, que cada caso é um indivíduo, uma pessoa, com os seus sentimentos, os seus pensamentos, a sua vida. Cada pessoa é uma vida e não um número estatisticamente trabalhável ou um objeto que se pode mudar daqui para ali, utilizado ou movido como aprouver a quem «manda». (Paradigmaticamente, esta imagem é levada ao extremo numa recente comédia italiana, em que um funcionário público é transferido sucessivamente até ser enviado para a Sibéria ou outro local igualmente distante, aceitando sempre a mudança…)

Infelizmente, muitas são as pessoas que se sentem assim, que sentem que não são consideradas na sua dignidade humana. No entanto, pouco fazem para que esse sentimento mude algo na sociedade, na realidade que nos rodeia.

Um conto da sabedoria islâmica, recontado por Tolentino Mendonça, narra a história de um homem que perde a chave dentro de casa, mas que vai à procura dela no exterior, onde há mais luz, em vez de a procurar na escuridão do local onde a perdeu. «Parece bizarro, mas acontece-nos a todos com frequência: buscamos onde julgamos ser mais fácil e não necessariamente no sítio onde seria razoável que o fizéssemos.»

Ora, até mesmo esta afirmação na parede é apenas uma declaração, uma constatação, um queixume, não contendo nenhuma intenção de levar os outros a atuar e a mudar algo. É esta frequentemente a nossa maneira de atuar – queixamo-nos e lamentamos o que nos acontece, mas pouco fazemos para mudar o estado das coisas, sobretudo porque, na maioria das vezes, consideramos que a culpa não é nossa, que a culpa é dos outros.

Escrito em parceria com o blogue da Letrário, Translation Services