Há dedos que se esticam com se quisessem atingir o inatingível. Parecem independentes de outros que se cerram, encarquilham-se, denunciando nós que há muito ganharam calo. Dobrado sobre si próprio, Nélson Moniz arrasta-se pela sala. Tem o seu método. O seu tempo. Sabe que chegará onde tem de chegar. E chega, pousa a cabeça no colo de Ricardo Peres, que lhe passa a mão na cabeça. Trocam olhares de eu-sei-que-tu-sabes-que-eu-sei, os olhos azul-esverdeado de Nelson não têm fim. À sua volta, outros 11 atores do grupo Crinabel Teatro, simulam ter flutes de champanhe nas mãos. “Tirem os óculos”, atira Marco Paiva, encenador e diretor artístico do grupo. “E Tó, sai da praia!”, acrescenta. Tó sabe o que significa a expressão e de imediato se endireita na cadeira. E começa: “Quantas pessoas eram?”, diz, com uma voz imponentemente colocada. “É difícil dizer exatamente quantas pessoas eram”, responde Rui Fonseca, encetando aí um longo monólogo. Os restantes ouvem, sossegados, nas respetivas posições. Sem vacilarem.
“Olha o tom, é uma pergunta”, explica Marco a Rui Fonseca, ou Marius, que logo começa a repetir a frase até acertar. Depois do monólogo de Tó, é Nelson que levanta a cabeça, avança com a urgência de ter algo para dizer. E tem. Porque nos minutos que está ali, sozinho, não balbucia palavras sem sentido, mas antes as palavras de Gonçalo M. Tavares. Fixou-as todas. Sente-as. Interpreta-as. Mesmo que quem está à sua frente não as entenda. “Claro que corremos o risco de as pessoas não darem o valor, não perceberem que ele efetivamente fixou um texto e o está a dizer. Mas, se algumas perceberem nem que seja algumas palavras, já valeu a pena. Se usássemos uma voz off iria desvirtuar aquilo que é o grupo e o nosso trabalho. E o Nelson ficaria muito ofendido”, explica, mais tarde, Marco Paiva. “Não gostamos que as pessoas venham ver os nossos espetáculos e fiquem confortáveis. Queremos que se incomodem. O impacto, quando nos vêm ver pela primeira vez, é violento. E já aceitei que, quando nos vêm ver, vêm sobretudo ver o projeto da Crinabel. Mas quando saem da sala, a discussão normalmente não é sobre a deficiência, mas sobre os espetáculos em si, as suas virtudes e fragilidades”, acrescenta.
“Joana, cuidado, não estás a contar uma história a uma menina. Olha o tom. Tens de ter mais prazer a contar a história. É uma conversa. Não percam o prazer de contar a história que o Gonçalo escreveu”, aconselha Marco. “Está tudo?”, responde o grupo. “Está. Até amanhã.”
Sem nervos para a estreia
Do Lumiar para a Baixa de Lisboa. Da sala de ensaios da Crinabel para a sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II. Da luz que inunda através da claraboia que rasga o teto para o breu de uma sala de dourados e veludo cor de sangue. Faltam pouco mais de 24 horas para a estreia. Mas sem nervos. “Nervos? Não estou nada nervosa”, diz Ana Rosa Teixeira, 25 anos. Enquanto uns esperam pacientemente nas suas posições, durante minutos que soam a horas, outros acertam pormenores. A brincadeira nunca questiona o compromisso. Paula Mora, atriz da companhia do D. Maria II que também integra a peça, juntamente com Manuel Coelho, conversa com Carolina Sousa Mendes, a Hanna deste “Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai”, numa lateral do palco. “Estava preocupada com o laço que leva na cabeça”, revela Paula Mora, que em tempos tinha passado pela Crinabel como estagiária do curso de Psicologia, para logo acrescentar: “Eu e a Carolina criámos uma grande cumplicidade, ela ri-se muito das minhas brincadeiras, e esta peça é fruto justamente destas cumplicidades. E do facto de nos respeitarmos todos como colegas. Eu não estou aqui a pensar que eu é que faço certo. Fazemos diferente e ganhamos todos.”
As luzes vão hibernando. “Bora malta?”, grita Marco Paiva. Bora. “Quantas pessoas eram?”, repete, mais uma vez, Tó Coutinho, sentado num sofá branco, rodeado por outros 11 atores do Crinabel Teatro. “É difícil dizer exatamente quantas pessoas eram”, responde, mais uma vez, Rui Fonseca, sozinho, em pé, agora naquele palco tão maior do que a sala de ensaios.
Fugir aos espartilhos
Marco Paiva tinha uma certeza: queria que o ano de 2016, que assinala as três décadas do Crinabel Teatro, fosse “impactante e também perspetivasse outros caminhos futuros para o grupo.” Mas a primeira vez que Gonçalo M. Tavares, com quem há anos colaborava, lhe sugeriu que encenasse este texto, a resposta foi perentória. “Respondi-lhe que não me interessava”, recorda Marco. “Não me interessava nada trabalhar um texto sobre uma miúda com Trissomia 21. Mas depois o Gonçalo insistiu que lesse o livro e percebi que o foco não era esse. Apenas acontecia que a Hanna fosse portadora de Trissomia 21.”
Justamente por isto, na peça, Hanna não carrega consigo a caixa com fichas divididas que procuram determinar o comportamento pessoal e social das pessoas. Aqui não há caixas. Porque se há algo que caracteriza este grupo de atores é a ausência desses espartilhos. Naquilo que muitos leem como deficiências, transborda liberdade. “Qualquer um de nós, qualquer pessoa, tem o seu universo próprio. E estes atores também o têm. A diferença é que eles não têm as caixinhas que nós temos, são mais livres”, explica Marco. “Muitas vezes, sobretudo nos primeiros anos, perguntavam-me porque não fazíamos antes um grupo de dança, em que eles não tivessem de falar, porque alguns não falam tão bem. Mas eles são pessoas que falam, pensam e que têm direito a traçar o seu caminho.”
O processo para construir “Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai” foi particularmente longo. Marco Paiva quis abrir as sessões de leitura do livro a outros atores, amigos e ao próprio Gonçalo M. Tavares. Juntos, entre fevereiro e maio, descobriram e redescobriram a história de Marius, que, na rua, encontra Hanna – “14 anos, 12 de outubro, olhos pretos, cabelo castanho” – que procura o pai. Uma menina que procura e um homem que foge, e que se vão cruzando com as mais inusitadas personagens, como um fotógrafo que coleciona imagens de animais; uma de cinco – que na verdade são seis – irmãos de uma família que cola cartazes porque estão “no mundo para o boicotar”; ou ainda os proprietários judeus de um hotel que tem os quartos com nomes de campos de concentração. “Este texto é sobretudo sobre as ruínas físicas e morais do pós-guerra. E sobre a amizade entre a Hanna e o Marius”, acrescenta Gonçalo M. Tavares, sublinhando que há anos que procura desenvolver projetos com grupos que trabalham a diferença, sendo a particularidade do Crinabel Teatro “o facto de o Marco trabalhar com eles sem qualquer paternalismo. Ele é o encenador e eles os atores, e há aqui atores que fixaram monólogos que eu não conseguiria fixar.”
Depois da fase da leitura, da descoberta das camadas e camadas de interpretação, de horas de conversas, começaram as improvisações, acompanhadas por mais dúvidas. “O que procurámos fazer foi cruzar fragmentos do texto com as memórias dos atores. E foram começando a surgir dúvidas que só acrescentaram ao resultado final. Por exemplo, o Rui, que interpreta o Marius, começou a questionar se a Hanna não estaria a mentir e em vez de procurar o pai procurava companhia para a sua travessia. Outros repararam que o número 12 aparecia muitas vezes no livro – isto, por exemplo, é uma coisa que o próprio Gonçalo não tinha consciência”, revela Marco Paiva.
Trinta anos de cumplicidade
“Isto é uma coisa da resistência. Trata-se de resistir”, ouve-se a determinado momento. É mais do que resistir que se faz neste grupo. Para estas pessoas, o teatro é vital. É uma opção de vida. “O meu sonho é um dia ser ator profissional, e representar ao lado do Ruy de Carvalho”, diz-nos Tó Coutinho, 51 anos, um dos fundadores deste grupo. Hoje, tal como há 30 anos, continuam a ser os aplausos que o fazem querer ser ator. “É tão bom quando nos aplaudem, quer dizer que gostam de nós”, revela, com um sorriso que lhe cobre a face.
Foi em 1986 – “no mesmo ano em que eu nasci”, apressa-se a dizer Ana Rosa Teixeira – que o grupo de teatro da Crinabel deu os primeiros passos, pela mão do ator Francisco Braz. A cooperativa sem fins lucrativos foi fundada em 1975, em Lisboa, por um grupo de pais e amigos ligados à reabilitação de crianças e jovens com atrasos no desenvolvimento. Onze anos mais tarde surgia um atelier de atividades expressivas, que acabou por dar origem às primeiras representações, inicialmente espetáculos ligados ao programa de ensino. Depois, há 16 anos, com a entrada de Marco Paiva, atual diretor artístico, o grupo foi-se abrindo a outro tipo de textos, numa descoberta que foi isso mesmo para o próprio Marco Paiva.
"Tinha um amigo que era professor e um dia me desafiou para ir ver uma leitura que os seus alunos estavam a fazer do ‘Ensaio Sobre a Cegueira’ que me fez começar a despertar para o teatro. Pouco depois, através desse mesmo amigo, conheci a Milú Neto [coordenadora e formadora na Crinabel], que me desafiou para conhecer a Crinabel. A verdade é que, quando lá fui, nem sabia bem ao que ia, mas o primeiro impacto, que me impressionou, foi a cumplicidade entre eles. São um clã. Mas ao mesmo tempo, lembro-me de pensar que, como espetáculo, não me interessou muito.” Mas sentiu que podia desenvolver ali trabalho. E aprender muito. Mais do que na licenciatura em Formação de Atores pela Escola Superior de Teatro e Cinema, que fez. “Não tenho dúvidas que as coisas mais importantes que aprendi, na vida e na representação, aprendi-as aqui, com eles. Têm um sentido de coletivo e de escuta como não vejo noutros sítios. E são muito intuitivos. E verdadeiros. Estão no palco do Nacional D. Maria II como estão noutros palcos. Para eles não há diferenças. Porque não se fecham em caixinhas. Só querem comunicar.”
Depois de uma experiência com o “Auto da Visitação”, de Gil Vicente, em 2004, dois anos mais tarde, Marco e o grupo da Crinabel levaram a cena “A Metamorfose”, de Franz Kafka. “Foi o grande momento de rutura. Foi o primeiro espetáculo que fizemos em que todos eles tiveram um papel mais interventivo na criação.” A mudança na metodologia ditou que cada ator passasse a ser muito mais do que apenas ator. E que passasse a poder ter uma voz. “Eles são movidos apenas pelo prazer e necessidade que sentem de dizer coisas. Para todos eles é vital estarem aqui”, explica Marco. Por isso, logo no dia 24, o grupo já estará em Montemor-o-Novo, na primeira etapa de uma digressão que termina a 3 de dezembro, em Torres Novas. E já há planos para todo o ano de 2017: a participação numa ópera com Albano Jerónimo que fará regressar ao D. Maria II cinco destes atores, mas também uma peça inspirada no trabalho de Cindy Sherman, e outra com texto de Samuel Beckett. “Só não sei como vamos pagar isto”, desabafa o diretor artístico Marco Paiva. É que o Crinabel Teatro não tem qualquer financiamento. “Quando tudo falha, pedimos aos amigos”, remata. E esses nunca falham.