Polémica em Roma. McVaticano?

A McDonald’s está prestes a abrir um restaurante no edifício onde o Papa Bento XVI viveu enquanto cardeal. A cúria romana não gostou e até invoca nutricionistas. Cardeais contradizem-se

O McDonalds é talvez a cadeia de restauração mais popular do mundo ocidental. A Igreja Católica é o berço de uma religião que fundou esse mundo ocidental. Será que o casamento entre ambas as portas irá a bom porto? No Vaticano, não parece.

As obras duraram meses mas os estandartes da marca foram erguidos há pouco e causaram prontamente olhares inquisidores. Em pleno Bairro Pio, a escassos metros da Praça de São Pedro onde o Papa se costuma dirigir aos fiéis, iria abrir um McDonalds. O negócio, com uma dispendiosa renda de trinta mil euros mensais, está aprovado pela Administração do Património da Santa Sé. A administração estaria com dificuldades em conseguir um inquilino que aceitasse o preço a pagar por mês pretendido. Antes, o edifício albergava um restaurante tradicional italiano, uma trattoria. Uns andares acima, chegou a viver um célebre cardeal, Joseph Ratzinger, mais tarde Papa com o nome Bento XVI. Trata-se de uma das residências eclesiásticas mais antigas da cúria e até já foi um banco. Não estando literalmente no interior das muralhas do Vaticano, está bem perto, por exemplo, do quartel da Guarda Suíça.

Uma carta de moradores e cardeais endereçada ao Papa Francisco pedia “a Sua Santidade” para intervir no Bairro e impedir o estabelecimento do “colosso americano”. A administração responsável confirmou que os trabalhos estavam parados, “não por ilegalidades”, mas para retificar que o projeto segue em frente. Há, portanto, uma posição constrangedora por parte do Vaticano, que aprovou a obra sem consultar os cardeais a viver na propriedade anexa. Os próprios cardeais que vieram a público confrontar a decisão, e uma das maiores multinacionais do planeta, a McDonalds.

A carta, assinada por vários cardeais, apelava à não intervenção de restaurantes de fast food na “identidade artística, cultural e social do local”, lembrando “normativas da tutela” de propriedades que pertençam ao Vaticano e o “decoro em património de um centro histórico sob a alçada da UNESCO”.

Para os contestatários, a zona já está algo “saturada” e a chegada de um McDonalds causaria fluxos incontroláveis de pessoas que poderiam colocar a ordem pública em causa. A estratégia “turístico-comercial” é acusada de ser uma cínica exploração que rouba “o passado e a sacralidade do bairro”, assim comprometida. O odor que passaria para os apartamentos clericais também é uma das causas de descontentamento.

O Cardeal Elio Sgreccia, antigo presidente da Academia Pontifícia para a Vida, é um dos críticos mais assumidos do caso, embora não seja um dos cardeais a viver na propriedade. “É pouco discutível, aberrante, e nada respeitador da tradição arquitetónica de uma praça tão característica e tão próxima à colunata de São Pedro”, atirou, na imprensa nacional italiana. O cardeal preocupa-se com as consequências a nível de trânsito e lixo que a novidade poderá provocar. “É uma perversão do bairro”, afirmou também.

A zona é visitada diariamente por milhares de peregrinos e turistas. Sgreccia não ficou por aqui e criticou também a negligência em relação aos restaurantes das redondezas que sairão prejudicados. Para si, o ocorrido “é uma desgraça” que não respeita a tradição gastronómica romana. O cardeal chegou mesmo a apontar estudos de “vários médicos e nutricionistas” que provam que as refeições da McDonalds “não garantem a saúde dos seus consumidores”. “Nunca o comeria”, rematou. Para Sgreccia seria mais apropriado utilizar o espaço, que possui centenas de metros quadrados, para “quem precisa e sofre, como Nosso Senhor ensinou”.

Domenico Calcagno, o cardeal responsável pela Administração do Património da Santa Sé, insiste que “não há nada de negativo” no assunto e que o negócio tem validade legal. A polémica estala depois de rumores que colocavam uma loja de lembranças do Hard Rock Café a ser pensada para substituir uma velha livraria nos arredores do Vaticano.

O sucesso do McDonalds, no entanto, não é garantido. Recentemente, um dos seus restaurantes de frente para o Panteão de Roma fechou. Os moradores mantêm algum conservadorismo no que toca à restauração fast-food e os estabelecimentos são obrigados a descrição de modo a não interferirem visualmente na arquitetura da capital italiana. Essa descrição não se verifica no até agora construído no Bairro Pio. Pierluigi Battista, um colunista italiano do Corriere della Sera, criticou os cardeais por apenas se preocuparem com a qualidade dos alimentos quando as suas residências estão em causa. Em 1986, o primeiro McDonalds abriu no centro histórico de Roma, também sob forte contestação popular.

Um português a estudar na cidade contou ao i: “É a zona perfeita para o Mac porque passam milhares e milhares todos os dias e não há qualquer concorrência do género ali. Serem inquilinos da Santa Sé é que parece algo estranho… Tínhamos ouvido falar numa pastelaria que não terá sido aceite porque precisava de instalar fornos”. O cheiro a fritos parece não ser condicionante.