Às vezes há males que vêm por bem. Mas sem grandes exageros, é claro. Só que uma inesperada alteração na ordem dos acontecimentos, como, por exemplo, partir uma perna, coloca-nos diante de algo novo. Quem diria que gesso branco poderia estar por detrás do mais recente disco de Noiserv, “00:00:00:00”, um trabalho em que David Santos faz uma aparente descomplicação daquilo que é o seu som. Depois de discos em que a ordem era acrescentar mais camadas, texturas sonoras, instrumentos ou apenas sons – orquestras quase visíveis, como lhes chamou no último disco, de 2013 – Noiserv viu-se agora envolvido num desafio de redução. “É como se fosse eu e vários pianos”, diz-nos. Mas o trabalho de construção por camadas continua vivo.
E tudo começou com o tal infeliz acaso. Estávamos em fevereiro de 2015 e a cabeça de Noiserv fervilhava com ideias. Mas uma lesão durante um jogo de basquetebol traduziu-se num pé partido, gesso a travar-lhe os andamentos e a subjugá-lo à ditadura da imobilidade. “Tive de ficar em casa, longe do meu estúdio, onde só tinha um piano e uma guitarra.” Deu-se uma preguiça forçada, talvez? “Não sei se terá sido preguiça, até porque, depois de ter tirado o gesso, podia ter seguido outro caminho.” Só que já era tarde demais: aqueles 24 dias tornaram-se fundamentais no desenho de um disco de pianos, algo que, na verdade, até já vinha mais de trás. “Tinha acabado de fazer uma série de rascunhos no piano que poderiam ser algo que sucedesse a ‘Almost Visible Orchestra’, ainda que achasse que, mesmo em termos estéticos, seria esse o caminho que iria seguir, só que com outras canções.” A lesão no campo de basquetebol levou-o a um turnover. “Por que não viro o jogo todo e não tento um desafio diferente? Em vez de a busca ser por 70 ou 80 instrumentos diferentes em cada música, por que não me tento restringir a um só instrumento?”
Solidão viciante Foi, então, com a premissa de um disco escrito ao piano que nasceu este “00:00:00:00”. São oito canções: cinco instrumentais e três com pequenos apontamentos poéticos, de voz delicada, quase sussurrada e tímida, a procurar o conforto e a clareza nas melodias. Essa é uma marca no trabalho de David Santos há, pelo menos, 11 anos, altura em que fez nascer a figura de Noiserv a quem já chamaram o “homem-orquestra”, a salvar sozinho o mundo da solidão. “Trabalhar sozinho tornou-se uma coisa quase viciante”, explica. “É como aquelas pessoas que ao fim do dia têm de ler um livro, fazer uma corrida ou ir ter uma aula de qualquer coisa. Não é por se tornar um refúgio do resto, mas a verdade é que deixa-nos dependentes dessa ligação a nós próprios. Eu tenho isso com a música: é o momento em que estou comigo”, acrescenta. “Não há melhor motivação do que conseguires fazer sozinho algo de que te podes orgulhar e isso também acaba por condicionar a tua relação com as pessoas, com a tranquilidade que possas, ou não, ter.”
Noiserv foi à escola O piano não é de hoje, mas também já suspeitávamos isso. No seu mundo de glockenspiels, vibrafones, sintetizadores, pequenas cornetas ou caixinhas de ritmos tinha de haver um espaço para teclas e, provavelmente, um disco de piano seria apenas uma questão de tempo. David confirma: “O piano foi, desde sempre, o instrumento mais completo. Dependendo da dinâmica ou da forma como tocas, uma mesma nota pode ter uma série de leituras diferentes.” Percebendo isso, o compositor decidiu inscrever-se em aulas de piano, prolongando os estudos até ao quarto ano, algo que o ajudou a perceber uma série de coisas. “Acho que consegues transmitir melhor o que sentes numa nota tocada ao piano do que numa nota tocada na guitarra.” David sublinha que não andou à procura de referências específicas para o ajudar a construir o disco e mesmo que fale em Yann Tiersen ou em Bernardo Sassetti, este não é um álbum que seja, necessariamente, parecido com o de alguém.
A paleta de sons no catálogo de Noiserv pode ser muito extensa, mas há um traço que acompanha todas as criações: o apuro nas composições e a marca da introspeção. “Não é que seja uma busca, mas a verdade é que demoro sempre bastante tempo a conseguir fazer com que as coisas me soem perfeitas: se há o desalinhar de alguma coisa, se noto um som mais baixo aqui ou acolá, posso estar dias a tentar mudar até que me soe perfeito.” O músico não sabe se isso está intimamente ligado a uma delicadeza que vive nas suas música, ainda mais com o toque do piano, mas “a procura por aquele momento em que tudo soa bem é uma preocupação – tanto tanto neste disco como nos outros”.
Banda sonora de um qualquer filme Este não é um começo do zero, mas a sequência de zeros do título do disco sinaliza o arranque de alguma coisa. Nem que seja a marca de uma origem, o apontar do momento em que até o homem dos 80 instrumentos simplifica o seu processo criativo: só ele e o piano, antes de ligar a sua loopstation que lhe permite construir camadas de som por cima de mais camadas de som. “O princípio tem sempre um lado poético. Como ainda não fizeste, podes arriscar fazer quase tudo. E isto serve para a vida e serve para a música”, sorri.
“Há muitas músicas que continuam a nascer na guitarra, até porque foi o meu primeiro instrumento. O disco, ainda que seja um começo, não significa que vá só fazer isto daqui para a frente.” Neste caso, David preferiu dizer as coisas, preferencialmente, mais com a ponta dos dedos do que com as palavras, uma ideia que vem de mãos dadas com o conceito de “00:00:00:00”: as melodias a provocarem os sentidos, a espevitarem a imaginação e dar vida a imagens. “Quando comecei a fazer as músicas rapidamente me pareceu que esta podia ser a banda sonora de um filme”, ainda que não seja, necessariamente, uma obra televisiva ou para ser exibida no grande ecrã. É música para as imagens que estão na cabeça de quem a está a ouvir.
Este novo disco chega amanhã às lojas, numa altura em que o seu outro álbum, “Marrow” – com os You Can’t Win Charlie Brown – está em primeiro lugar na lista dos mais vendidos em Portugal. Entramos então no período de conciliar agendas e equilibrar estados mentais, sobretudo para a digressão, que passa, nesta altura, por França, mas que terá um momento especial com a apresentação oficial do disco num concerto no Teatro São Luiz, em Lisboa, a 10 de novembro.
É comum vermos nas partilhas das redes sociais de Noiserv a parafernália de instrumentos que enchem o porta-bagagens e o banco de trás do carro que o leva em tournée. Mesmo sendo “00:00:00:00” um disco ‘só’ de piano, David não vê a sua vida facilitada: “O carro ainda vai mais cheio, porque é mais um teclado para poder fazer ao vivo a parte do piano”, explica. “É um disco relativamente curto, só estas canções não aguentavam bem um concerto. Por isso acabo por juntar tudo, mas não há nenhum problema nisso. Este não é um Noiserv diferente: é a mesma pessoa, só que com um suporte diferente.”