A importância de se chamar Ernesto

Bem no início chamavam-lhe Teté, nome impróprio para quem se dedicava a fazer revoluções. Depois chamaram-lhe Chancho. E aí ele fundou uma revista de râguebi: Takle. Era o seu desporto. Sofria de asma e houve mesmo um médico que o proibiu de jogar. Esteve-se nas tintas. Yporá, Atalaya, San Isidro foram os seus clubes. Era…

No seu tempo de estudante de medicina, em Buenos Aires, fazia parte da equipa de râguebi da faculdade. Certa vez não compareceu a um jogo importante. «Está haciendo una revolución en Panamá», justificou um colega, de brincadeira. Ainda não era comandante e Carlos Puebla não escrevera – «Aquí se queda la clara/La entrañable transparencia/De tu querida presencia». Mas eu queria falar do ano de 1951 e isto foi só um prelúdio. Por isso vou até 1951.

Em 1951, Ernesto Guevara de La Serna estava no Chile. Já lhe chamavam o Che. Viajava de moto: uma Meccanica Garelli, italiana, de nome La Poderosa II. Era lenta queixava-se. E não durou muito. O Che e o seu amigo Alberto Granados não tardaram a ver-se a pé.

Ernesto gostava de futebol. Gostava muito de futebol, o que é perfeitamente natural num jovem argentino dos anos 40 e 50. Certo dia estava em Bogotá e e viu Di Stéfano entrar pela porta do restaurante: jogava nos Millionarios com os compatriotas, Adolfo Perdernera e Néstor Raúl Rossi. Dom Alfredo simpatizou com o rapaz que foi ao seu encontro. Deu-lhe um bilhete. Guevara escreveu: «Amanhã assistirei ao desafio entre os Millionarios e o Real Madrid. Nas bancadas mais populares, já que é mais fácil enganar um ministro que os nossos compatriotas». Os colombianos tinham uma equipa famosa: ‘Ballet Azul’.

Notas de Viagem – é um livro de memórias do périplo do Che e de Granados pela América Latina. Está cheio de histórias de futebol, mas Ernesto não gostava apenas de futebol: saltou à vara, adorava xadrez, era fã de Juan Manuel_Fangio, praticou tiro, hipismo e ciclismo e dizia que este era um desporto absurdo. No Norte do Chile, encontraram um grupo de camineros que se treinava para defrontar os rivais de uma aldeia vizinha. Deram uns pontapés na bola com eles e foram contratados: comida, dormida e boleia para Iquique. Assim se percorriam as etapas nesse ano de 1951, ainda ele não sabia o que era estar em parte nenhuma.

Em San Pablo, no Peru, numa leprosaria, mais futebol: «Recordo-me o campo que era maravilhoso, rodeado de árvores. Jogávamos tanto contra os leprosos como contra os sãos. Formavam duas equipas adversárias». Em seguida, Machu Pichu, esse lugar que parece impossível: «Por entre as ruínas encontrámos um grupo que jogava futebol e, depois de ter feito uma ou duas defesas vistosas, confessei humildemente que já tinha passado pela I Divisão da Argentina. O dono da bola era chefe de um hotel. Convidou-nos a passar lá uns dias». Praticamente profissionais, dir-se-ia. O hábito manteve-se pelos quilómetros seguintes. Na cidade de Leticia, na Colômbia, transforma-se mesmo numa tábua de salvação: «Contrataram-nos como treinadores, enquanto esperávamos pelo avião que saía de quinze em quinze dias. Mas eram tão maus que decidimos jogar também. Com o brilhante resultado de termos chegado à final de um campeonato relâmpago. Alberto estava inspirado e, com o seu estilo que fazia lembrar Pedernera, recebeu a alcunha de ‘Pedernerita’. Eu defendi um penálti que ficará para a história de Leticia».

Ernesto Guevara de La Serna foi jornalista desportivo e fotógrafo, cobrindo os Jogos Pan-Americanos de 1955, no México, para a Agencia Latina. Subiu ao topo do Pocatépetl, a 5400 metros de altitude, enfrentou os desígnios da Sierra Maestra com um tabuleiro de xadrez em miniatura numa mão e a espingarda na outra. Em Cuba, teve saudades. Confessou a Celia de La Serna y Losa, sua mãe: «Aqui ninguém joga futebol nem râguebi. De basebol não gosto». Apesar de tudo, experimentou, para agradar aos amigos Fidel e Cienfuegos.

Foi ao Congo e à Bolívia fazer revoluções porque era isso que gostava de fazer. Da Bolívia não voltou. Mario Téran, um homenzinho cujo nome o futuro esqueceu, abateu o Che em La Higuera. A foto do seu cadáver, deitado numa mesa de escola, ficou para sempre na memória: «Hasta Siempre Comandante…». De olhos abertos. fixando a morte de frente.