A orquestra negra, mas esperançosa, de PJ Harvey

A cantora inglesa mostrou o seu mais recente disco, “The Hope Six Demolition Project”, ao Coliseu dos Recreios.

Ainda não passaram seis meses desde a última vez que PJ Harvey esteve em Portugal. A memória leva-nos até meados de maio, ao Parque da Cidade do Porto, quando a compositora inglesa veio apresentar durante o festival NOS Primavera Sound o seu último disco, “The Hope Six Demoliton Project”. Desta vez, e, curiosamente, em plena altura de DocLisboa, foi o Coliseu dos Recreios que se rendeu a um concerto-documentário de Polly Jean.

Desde o disco anterior, “Let England Shake”, de 2011 –que fez com que a artista tenha levado para casa importantes troféus como Brit Awards e Mercury Prizes – que se percebeu que PJ Harvey tinha uma agenda própria para os seus trabalhos. Mas esta é daquelas agendas que convém espreitar e perceber. Convém escutar. Durante a tarde, um par de horas antes do de subir ao palco, conversámos com Mick Harvey, um dos instrumentistas que acompanhou Polly Jean nas gravações dos dois últimos trabalhos, que salientava o caráter documental de ambos os discos, sobretudo no mais recente, editado em abril, e que resulta da influência do trabalho fotográfico de Seamus Murphy que retrata marcas de guerra, que questiona as inábeis democracias instaladas em países como Afeganistão ou Kosovo, com a marca e conveniência da capital norte-americana que é também, de certa forma, a capital do mundo ocidental, Washington DC.

Já tínhamos a sensação de que este concerto de hoje não vinha com a marca do rock de paixões, sensual e sexual. “Chain of Keys”, de “The Hope Six Demolition Project” – que, em jeito de curiosidade é também o nome de um programa do governo norte-americano para revitalização de bairros problemáticos – foi o tema de ignição do espetáculo. Luzes baixas, músicos vestidos de negro, sopros – saxofones bem graves – e muitas percussões a dar um ritmo de marching band fúnebre e a marcar o tom da noite. Na tela atrás da banda apenas uma imagem: um muro de betão.Temos uma espécie de orquestra negra em palco, com Polly Jean, também ela de negro da cabeça aos pés e com um ocasional saxofone ao pescoço (em vez da habitual guitarra), a guiar-nos com o seu olhar de repórter pelas temáticas da dor, da herança da guerra que faz sempre derramar sangue inocente. “A woman keeps her hands behind her back/imagina what her eyes have seen”, canta no tema de abertura enquanto olha fixamente para o infinito, que fica bem para lá das paredes do Coliseu dos Recreios. Essa é uma imagem que se repete diversas vezes ao longo da noite: para comungar com a plateia, Polly Jean tem de viajar nas próprias memórias.

Não há regressos ao passado. Pelo menos para já. Importa levar a plateia para aquela zona que PJ Harvey faz questão de querer mostrar com as canções. As primeiras cinco canções são todas de “The Hope Six Demolition Project” – incluindo “The Community of Hope”, o tema que recorda que a cadeia de supermercados Walmart faz parte de um plano de reabilitação social. Passa depois pelo tema título de “Let England Shake” e por “The Words That Maketh Murded” – que termina com uma pergunta: “What if I take my problem to the United Nations?”

Além de ser um relato, a apresentação também construída para nos fazer refletir. São vários os temas em que PJ Harvey lança questões diretas à plateia – “The Glorious Land” é um exemplo disso. Naquelas em que o ponto de interrogação não surge no texto, acaba por ficar na parte de trás das nossas cabeças: ouça-se “Dollar, Dollar”, o relato de uma viagem de carro numa cidade do Afeganistão com a memória de uma criança a pedir dinheiro.

Mais do que as guitarras – que estão sempre presentes, e, às vezes, às três de cada vez – há um grande enfoque na percussão. Em palco, dos nove músicos que acompanham PJ Harvey, dois são bateristas. Mas nem são baterias tradicionais que aqui estão em palco: há bombos tocados à mão; há tímbalões que se chegam à frente de palco – em “A Line in The Sand” aparece um tambor vermelho que se faz notar, já que não é nem o preto das roupas dos músicos, nem o branco das luzes (que ainda provocam mais sombra), nem o dourado dos sopros. Cria-se, a cada momento, uma tonalidade grave e soturna neste blues rock. O tom é sério, o volume é alto, impositivo. PJ Harvey quer mesmo fazer-se ouvir.

O avançar do concerto traz alguns temas mais antigos, mas que não são escolhidos ao acaso nem para fazer o público regressar àquele momento do “no meu tempo é que era”. O propósito mantém-se. “To Talk To You”, uma dedicatória às avós, e “The Devil”, ambas de “The White Chalk” (2007); “50 Foot Queenie”, num regresso a 1993, ao disco “Rid Of Me” – esta com uma potência mais rock ‘n’ roll, que faz aparecer uma luz azul – e “To Bring You My Love”, de 1995, que põe plateia a cantar em uníssono.

Polly Jean e os seus nove músicos voltam a alinhar-se na parte da frente do palco para uma emocionante interpretação de “River Anacostia” – um tema que termina com vozes quase à capella, só com os tambores a guiar o elenco para o fim do espetáculo. É interessante que mesmo cantando sobre temáticas pesadas e recordações duras, aqueles dez músicos conseguem fazer esboçar sorrisos na plateia. Pela cumplicidade, talvez? O muro que servia de cenário ao espetáculo é derrubado, desaparece lentamente  – afinal de contas, também há um sentido de esperança depois do inusitado das canções. Os músicos haveriam de voltar a palco para tocar mais dois temas, “Guilty” e “My Last Living Rose” e recolher os aplausos de um público que soube ouvir o que PJ Harvey tanto quer que nós escutemos.