Quando nos sentamos com Mick Harvey no bar do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, faltam pouco mais de duas horas para ele subir ao palco. O concerto é de PJ Harvey, mas o músico australiano é hoje uma figura fundamental na concretização da obra de Polly Jean. Trabalham juntos desde 1995, quando a inglesa editou “To Bring You My Love”.
Foi também nesse ano que Mick Harvey se lançou numa aventura a solo à volta da obra do francês Serge Gainsbourg. Editou dois discos de reinterpretações em inglês, em 1995 e 1997, e o terceiro surgiu agora, 20 anos depois. “Delirium Tremens” foi lançado em junho, também curiosamente depois de PJ Harvey editar “The Hope Six Demoliton Project”.
É por causa desse novo disco de Mick que viemos até ao Coliseu de Lisboa – claro que acabaríamos por ficar para o ver a assumir as teclas e o baixo na orquestra negra de PJ Harvey. Mick é alto – muito alto, mesmo. Diríamos que, se não tem mais de 1,90 m, não andará longe. Vem com o cabelo puxado para trás, com um blazer, camisa e sapato lustrado pontiagudo. Tem 58 anos e são já muitos anos a trabalhar com canções e a viajar pelo mundo. Desde 1973, quando formou, com Nick Cave, os The Birthday Party, passando pela fundação dos Nick Cave And The Bad Seeds, em 1983. Mick Harvey percorreu o globo com o seu amigo desde os tempos na Caulfield Grammar School, nos subúrbios de Melbourne. Foram 36 anos a trabalhar em conjunto até que, em 2009, Harvey seguiu a sua vida, alegando algumas diferenças de opinião no trabalho de arranjos nos The Bad Seeds e a necessidade de querer estar mais tempo com a família.
A amiga Polly Jean Mick acabou por encontrar outra família no estúdio e na estrada. PJ Harvey – e note-se que entre o Mick e a inglesa não existe qualquer grau de parentesco – voltou a convidar o australiano para trabalhar consigo nos seus dois discos mais recentes: “Let England Shake”, com o qual ganhou um prémio Mercury, e “The Hope Six Demoliton Project”. “São dois discos muito especiais para ela. Marcam uma nova era no trabalho da Polly. Quase como se fosse uma reportagem em vez da escrita sobre sentimentos pessoais, como fez tantas vezes. E desviou-se disso.”
Mick tem trabalhado com muitos músicos – e estamos a contar com a produção de “Common Ground”, de 2013, de Mazgani, feita a meias com John Parish, que também se vai passeando pelos bastidores do Coliseu dos Recreios. “Eu não separo o meu trabalho de músico do meu trabalho enquanto produtor. Faço sempre a mesma coisa. Há muita gente que me pede para tocar diferentes instrumentos, apesar de não tocar assim tantos. Há quem me peça p ara tocar bateria, baixo ou teclados. Nos meus discos costumo cantar e tocar guitarra. Mas no fim de contas faço sempre o mesmo trabalho. Quando me pedem para produzir, se não puder tocar com eles, não tenho grande interesse. Prefiro sempre tocar – estar sentado numa cadeira a ver outras pessoas gravar música não é para mim.” O australiano percebe a música e percebe os criadores, apesar de dizer que tem mais queda para a criação de melodias que de poemas. “Quando trabalho com escritores de canções, tenho de os fazer sentir que estou a trabalhar com aquilo que a canção deles é, em vez de estar simplesmente a tocar alguma coisa por cima daquilo que eles dizem. Há uma diferença. Eu ouço o que está lá: trabalho com o que eles tentam fazer e ouço as letras.” Mas até aí Harvey tenta ser especial sem ser intrusivo. “No início quero apenas perceber o sentido das palavras. A última coisa de que um letrista precisa, quando está em estúdio, é ter alguém à volta a analisar-lhe as palavras – pode ser desconfortável. Eu posso saber a letra toda, mas não sei do que trata. Mas se me perguntarem sobre a temática, vou saber dizer do que fala.”
A oportunidade Gainsbourg A idade e a experiência trouxeram-lhe um sentido prático. Quando lhe falamos do seu trabalho à volta da obra de Serge Gainsbourg, Mick não se põe com grandes odes ao francês. E podia tê-lo feito, já que entrou a sério na imensa obra do poeta–músico-pintor-ator para poder criar “Intoxicated Man”, de 1995; “Pink Elephants”, de 1997; e “Delirium Tremens”. “E vai haver o quarto”, sublinha Mick a propósito de “Intoxicated Women”, agendado para o início de 2017.
“Não é um fascínio muito diferente daquele que alguém tem por um qualquer tipo de música”, atira. “Podes gostar de Leonard Cohen ou seres um grande fã dos Rolling Stones do período final dos anos 60.” Mas a verdade é que foi a Gainsbourg que Mick se atirou para a recriação. “O interesse ao ponto de fazer um projeto sobre isso vem da perceção de que o trabalho dele não era assim tão conhecido fora de França”, acaba por responder. “Lembro-me de estar em Berlim [que foi ‘casa’ dos Bad Seeds] a ouvir algumas coisas do Gainsbourg e apercebi-me de que nunca ninguém tinha traduzido o seu trabalho, como fizeram, por exemplo, com o Jacques Brel. E disse a uns amigos que seria ótimo alguém traduzir as canções do Gainsbourg. Acabei a pensar: ‘Talvez eu devesse fazer isso! Um disco de músicas traduzidas do Gainsbourg!’ E comecei a trabalhar.”
Entre os dois primeiros volumes, de 1995 e 1997, e o terceiro passaram duas décadas. Culpem-se as reedições, diz Harvey. “Foi isso que fez com que tivesse feito um par de concertos e os músicos com que eu trabalho começaram a desafiar-me.” De repente, teremos mais dois discos à volta da obra do verdadeiro enfant terrible que gravou “A Marselhesa” com uma tonalidade reggae (“Aux Armes Et Cetera”), que fez um disco com a filha Charlotte chamado “Lemon Incest”; ou outro chamado “Rock Around the Bunker”, com nazis como contadores de histórias. Mas nada disto parece impressionar Harvey – pelo menos, não o assume. “Eu não falava francês. Foi mais pela frustração de não conseguir perceber, verdadeiramente, o que ali estava e, ainda assim, gostar da canção. Se calhar, se soubesse francês, nem tinha tido a ideia de fazer isto.” Ainda assim, há sempre uma relação emocional. “Como dizia o David Bowie: ‘I am the DJ, I am what I play.’ Quando gravas uma versão também crias com ela uma relação, mesmo não sendo clara e pessoal. Talvez haja pessoas que são fãs de uma canção e apropriam-se dela, mas eu não faço isso.”
Mick Harvey envolve-se deliciosamente com múltiplos géneros – tendo como base o peso do rock‘n’roll. Cruza o mambo de “Coffee Colours” com o blues de “The Convict Song”, passa pelo peso industrial ao estilo de Faith No More em “SS C’est Bon” para depois trazer a delicadeza feminina em “A Day Like Any Other”. “Em última instância acaba por ser uma coleção de canções que tentámos pôr a funcionar em conjunto.” E numa coisa tem muita razão: ao fim de 20 anos, seria estranho voltar a Gainsbourg para fazer só um disco. “Tinha de ser em grande. Então gravámos muitas canções e decidimos dividi-las por dois volumes.”
Para já, Mick não quer pensar numa digressão, até porque tem em mãos as teclas e os baixos da digressão de PJ Harvey. “Mas gostava de organizar uns espetáculos pela Europa.” Em França, também? “Não sei, é difícil. Parece-me ridículo.” Sorri, com ar de rocker envergonhado. Receio de levar as canções a território sagrado? “Não, não quero saber disso”, volta a fechar-se. “Pode ter graça – há um festival dedicado ao Gainsbourg e pode ser que passe por lá. Só acho que eles já conhecem as canções, por isso não faria sentido. Nem creio que percebessem a ironia.”