O Lockheed Constellation que ligava Paris a Nova Iorque despenhou-se no Pico da Vara, na ilha de São Miguel. Todos os 48 ocupantes morreram no acidente. Tinha descolado de Orly às 20h05 do dia 27 de outubro de 1949. Havia uma escala prevista em Santa Maria.
Marcel Cerdan não tinha conseguido lugar nesse voo Paris-Nova Iorque. A morte tem insondáveis desígnios macabros. Um casal de admiradores do boxeur cedeu-lhe simpaticamente o lugar para a última viagem da sua vida. Cerdan tinha 33 anos, viveu depressa, foi um cadáver bonito. Um mês antes teve combate marcado com Jake La Motta no Madison Square Garden, pela desforra do título de pesos médios. La Motta teve medo: declarou-se doente. Eu sei, eu sei: quem diria que o Touro Enraivecido podia ter medo. Sobretudo, nunca Robert de Niro.
Cerdan estava apaixonado. «Le ciel bleu sur nous peut s’effondrer/Et la terre peut bien s’écrouler/Peu m’importe. Si tu m’aimes/Je me fous du monde entier». Edith Piaf também. A terra costuma tremer nos Açores. E as vidas. Deus, esse, diz que reúne aqueles que se amam. Foi em outubro também que Piaf e Cerdan se reuniram no eterno azul de toda a imensidão. Outubro de 1963. Já ninguém se lembrava que o seu nome era Édith Giovanna Gassion. George Perec escreveu «Lembro-me do combate Cerdan-Dauthiulle» no seu livro Je Me Souviens. Laurent Dauthuille, o Tarzã de Buzenval, nunca combateu com Marcellin Cerdan. Há memórias assim. Chamam-se lendas.
Não era tudo isto o que aqui me trouxe, mas não faz mal. Ou, por outro lado até era, mas de forma diferente. As páginas mais belas que li sobre Cerdan, O Bombardeiro Marroquino, foram escritas pelo Carlos Miranda. Que prosa! O Bombardeiro era marroquino, mas nasceu na Argélia: Argélia francesa, ainda. Depois, o seu pai abriu um café em Casablanca, no bairro Mers Sultan. Um café-dançante, como era moda na época. Na sala de baile montava, às vezes, um ringue. Aos oito anos, Marcel teve o seu primeiro combate. Aos 16 anos já era profissional de boxe. Em seguida foi o que se sabe: o seu estilo musculado, poderoso, rapidez de golpe fora do comum. Inovador: apresentava movimentos até aí nunca vistos. Há quem diga que tinha uma tática imbatível: disparava os seus socos consecutivos ao fígado dos adversários. O seu combate contra Tony Zale ficou marcado pelo desmantelamento do americano graças a uma mistura letal de precisão cirúrgica e brutalidade pura. Disputou-se em Jersey, no_Roosevelt Stadium no dia 21 de setembro de 1948. Cerdan tornava-se campeão do mundo de pesos médios.
Dificilmente haveria uma dupla mais improvável do que Cerdan e Abdelkader Larby Ben Barek. E, no entanto, o futebol juntou-os. E Casablanca também. Foi, pode dizer-se, tal como dizia Rick, desaparecendo no nevoeiro à medida em que o filme chegava ao fim: «O princípio de uma bela amizade».
Ben Barek foi um dos primeiros grandes jogadores africanos a ganhar nome na Europa. Veio para o Marselha, fez parte da seleção francesa – era também o tempo do Marrocos francês –, esteve cinco anos no Atlético de Madrid. Órfão à nascença, nunca soube qual do dia dos seus anos. Ainda adolescente jogou pela melhor equipa do Norte de África desses tempos: o Union Sportive Marrocaine, desaparecido após a independência do país. Foi lá que encontrou Marcel Cerdan. Antes de ser o boxeur que o mundo admirou e Edith Piaf amou, Cerdan foi um jogador de futebol de méritos reconhecidos. Interior direito ou esquerdo, marcava golos com a facilidade com que golpeava no ringue. Pelo seu primeiro clube, o Banque Union Sports, fez seis contra o USM._Não tardou a mudar de camisola e a jogar lado a lado com Ben Barek, tal como aconteceu num célebre Marrocos-França B disputado durante a guerra.
Depois, cada um seguiu o seu caminho. Ben Barek teve uma vida mais longa e menos amorosa. E Edith Piaf cantava: «Dans le ciel, plus de problèmes…».