EUA. As eleições da fúria

As eleições americanas estão longe de decididas. Hillary parte na frente, mas Trump tem um caminho aberto para a vitória.

O Partido Republicano quis que a derrota perante Barack Obama em 2012 fosse um momento de viragem. Era a segunda vez que o partido perdia por quatro ou mais pontos percentuais, muito mais do que as duas derrotas democratas contra George W. Bush. E a tendência, concordavam por esses dias estrategas e analistas republicanos, era tudo tornar-se mais difícil para a frente, à medida que fosse desaparecendo a sua base eleitoral, quase exclusivamente branca e relativamente envelhecida – daqui a quatro anos, por exemplo, mais de metade das crianças nascidas nos Estados Unidos será de etnias minoritárias, as mesmas que votam quase sempre em democratas. O partido publicou uma autópsia da derrota uns meses depois das eleições, argumentando, essencialmente, que para vencer eleições os republicanos tinham de construir pontes com minorias, jovens e outros estados não predominantemente republicanos; abandonar a imagem do partido do homem rico e deixar de apontar armas aos homossexuais.

O seu candidato à presidência é agora um magnata do imobiliário com 70 anos, branco e em constantes atos de contorcionismo para escapar aos comentários misóginos – e pistas de comportamento sexual abusivo – que semeou ao longo dos seus anos na indústria do entretenimento. Donald Trump é também o homem que passou anos a tentar convencer o público americano de que o primeiro Presidente negro dos Estados Unidos nasceu no Quénia e não no Havai – uma alegação que abandonou há algumas semanas, dizendo que quem a começou foi a campanha da sua rival democrata Hillary Clinton em 2008. O mesmo partido que há quatro anos concluiu que o melhor seria afastar-se das suas bases tradicionais e construir pontes com outros eleitorados tem como candidato – algo contrariadamente – um homem que defende forças especiais de deportação e sugere que os imigrantes mexicanos «são violadores» e «traficantes de droga». É esse homem que pode muito bem ganhar as eleições de terça-feira. 

Hillary Clinton ainda é a favorita para vencer as eleições norte-americanas disputadas entre os dois candidatos menos apreciados de que há memória. A média de sondagens calculada pelo portal fivethirtyeight calculava ontem que a candidata democrata tinha qualquer coisa como 3,3 pontos percentuais de vantagem sobre Donald Trump – uma queda abrupta em apenas uma semana, provocada pelo reacender da controvérsia à volta dos seus emails. À primeira vista, três pontos parecem uma margem confortável para Clinton, principalmente tendo em conta que o mapa eleitoral republicano é mais difícil do que o seu. Para superar os 270 votos no Colégio Eleitoral, Trump tem de vencer todos os territórios disputados – Nevada, Utah, Arizona, Florida, Ohio, Carolina do Norte – e ainda mais um estado da coluna de Clinton, como a Pensilvânia, por exemplo. Mas a vantagem que Hillary Clinton leva para as eleições desta semana pode não resistir a um modesto erro nas sondagens. E estes erros são mais do que habituais. 

Nas últimas cinco eleições americanas, as sondagens erraram por grandes margens três vezes – por 2,7 pontos em 2012, por 3,4 pontos em 2000 e por 3,3 pontos em 1996. «Tudo isto para dizer que mesmo no caso de a vantagem de Clinton sobre Trump não se encurtar ainda mais, Trump pode ainda vencer», escreve Harry Enten, no portal da fivethirtyeight. «Precisaria apenas de um erro de sondagens de dimensões normais. É claro que esse erro teria de ser a seu favor e não há nada que nos diga que os erros de sondagens só favorecem o candidato que está mais atrás», argumenta.

Um país fraturado

No campo democrata tornou-se comum a pergunta sobre por que razão é que Clinton não vence um candidato tão pouco adorado como Trump com uma margem avassaladora. A resposta não está apenas na sua própria fama entre conservadores e liberais – décadas sob o olhar público fizeram dela uma figura do poder e da banca na esquerda e as várias alegações de corrupção transformaram-na numa vilã para a direita. A explicação mais abrangente para o facto de o candidato mais detestado pelo eleitorado americano – 59,3% diz ter uma ideia má de Trump – estar tão próximo da presidência está mais relacionada com a grande polarização do eleitorado americano do que com o ódio especial a Clinton.

Os Estados Unidos estão demasiado fragmentados e o clima eleitoral deste ano é de tal forma negativo que é praticamente impossível uma corrida muito desigual. «A grande diferença é a composição dos dois partidos», argumenta Jonathan Darman, um autor norte-americano que escreve sobre a polarização do eleitorado americano. «Os partidos democrata e republicano eram muito mais heterogéneos no passado do que são agora», explica, dizendo que a identificação partidária de hoje é muito mais ideológica do que antes, quando estava sobretudo relacionada com a identidade regional e familiar. Os elos tradicionais da política americana foram substituídos por bolhas informativas que reforçam as visões partidárias de um ou outro grupo, fazendo com que o eleitor verdadeiramente independente, o que está disposto a votar num partido diferente consoante o candidato, seja hoje uma espécie de ser exótico. Há mais pessoas a identificarem-se como independentes, explica o cientista Corwin Smidt à Vox, mas são cada vez menos os que se comportam como tal.

Polarização partidária e geográfica

Existe uma montanha de exemplos desta polarização. Segundo um levantamento  feito pela agência de sondagens McClatchy/Marist, 90% dos republicanos têm uma opinião desfavorável de Clinton, dois terços dos que se identificam como independentes dizem o mesmo e quase todos os republicanos que dizem não votar em Trump recusam-se a fazê-lo num democrata, optando por um candidato fora dos dois grandes partidos. Mais: de acordo com o New York Times, os últimos vinte anos mostram que a polarização política norte-americana não é apenas partidária, mas também geográfica. A proporção de eleitores em condados em que um dos candidatos vence por mais de 20 pontos percentuais aumentou de 38% em 1992 para 50% em 2012, vinte anos depois. Ou seja: o eleitorado americano não só comunica apenas com os seus pares ideológicos, vive também perto deles, segundo argumenta Bill Bishop, o autor de um livro em que trata o fenómeno.  

«Estamos a escolher onde vivemos, como pensamos e – ao que parece – de quatro em quatro anos, como votamos», afirma. Algo que parece ter-se acentuado nos últimos meses, como explica Alan Abramowitz, cientista político, ao New York Times. «Só vejo este fenómeno intensificar-se, visto que Trump tem um desempenho muito melhor junto dos eleitores que vivem na América rural e das pequenas cidades».